(Discurso proferido pelo Prof. Des. Norberto
Ungaretti por ocasião de solenidade comemorativa
realizada na Universidade Federal de Santa Catarina,
sob a presidência do Magnífico Reitor,
em 3 de maio de 2002).
Em maio de 1932, o país vivia o clima
de inquietação que iria culminar,
dali a dois meses, na Revolução
Constitucionalista, iniciada em São Paulo
a 9 de julho. Em Santa Catarina, o assunto principal,
naquele começo de mês,era a permanência
ou não do Interventor Gal. Ptolomeu de
Assis Brasil na chefia do executivo estadual.
No dia 3 de maio, o ministro Oswaldo Aranha comunicou
ao Interventor que seu pedido de demissão
fora recusado pelo Chefe do Governo Provisório
(provisório que durou 15 anos, como se
sabe...).
Em nível local, a vida transcorria como
sempre. O Cine Glória, às 19,30
daquele dia 3 de maio, repetiria a exibição
do filme “Anjo das Selvas”, a respeito
do qual dizia a propaganda: “é um
drama sentimental, que muito agradou quando de
sua première, ontem”.
A Loja Maçônica Ordem e Trabalho,
que, aliás, está a comemorar, neste
ano de 2002, o seu centenário de fundação,
realizaria, no mesmo dia e hora, sessão
para eleição de seus dirigentes.
A colônia italiana de Florianópolis
encontrava-se em polvorosa. O novo Cônsul,
Cav. Ungarelli, não estaria se entendendo
bem com os patrícios locais. A ele, Augusto
Brando dirigia, pela imprensa, enérgica
reclamação, começando por
dizer que o fazia “como cidadão brasileiro
de origem italiana e grande admirador da Itália
Fascista”.
Mas o maior acontecimento da cidade, naquele
3 de maio de 1932, foi o início das atividades
docentes da Faculdade de Direito de Santa Catarina,
comemorado, pela manhã, com uma missa rezada
pelo cura da Catedral, no altar de São
José, por encomenda de outro José,
o qual, não sendo santo, fizera, entretanto,
o milagre de criar, desafiando o ceticismo de
uns e a indiferença de outros, o primeiro
estabelecimento de ensino jurídico do nosso
Estado.
A missa celebrou-se às 8 horas. Foi assistida
pelos professores catedráticos e docentes
livres, alunos do Ginásio Catarinense e
de outros estabelecimento de ensino, representantes
da guarnição federal e do 14°
Batalhão de Caçadores, representantes
de altas autoridades civis e militares, bem como
por “cavalheiros e senhoras da nossa mais
alta representação social”,
dizia o registro da imprensa. Ausente, por encontrar-se
em viagem, o diretor da Faculdade, des. Tavares
Sobrinho, ( que era também o Presidente
do Tribunal de Justiça), foi representado
pelo tesoureiro e docente livre, dr. Cid Campos.
Ao final, o des. José Arthur Boiteux, fundador
e secretário da Faculdade, recebeu os cumprimentos
dos presentes.
À noite, tendo regressado no correr do
dia à Capital, o diretor presidiu à
solenidade de abertura das aulas. Às 20
horas, acompanhado dos professores que iriam ministra-las,
drs. Pedro de Moura Ferro e Henrique da Silva
Fontes, dos seus colegas de Diretoria e de outros
lentes, o Des. Tavares Sobrinho deu entrada na
sala n° 1, onde já ocupavam seus lugares
os 23 alunos matriculados, presentes também
numerosas pessoas estranhas à Faculdade,
entre elas alunos do Instituto Politécnico
e do Ginásio Catarinense.
A primeira aula foi do catedrático de
Introdução à Ciência
do Direito, prof. Pedro de Moura Ferro. Há
quarenta e seis anos atrás, ou seja, em
março de 1956, o mesmo professor dava a
primeira aula da mesma disciplina ao grupo de
calouros que então iniciava seu curso de
Direito, e do qual faziam parte o modesto orador
que vos fala e o atual Diretor do Centro de Ciências
Jurídicas, prof. José Luiz Sobierajski.
De baixa estatura, moreno, rosto arredondado,
usando óculos de aro dourado, o prof. Moura
Ferro veio moço para Santa Catarina, onde
se casou e constituiu numerosa e respeitável
família. Dotado de viva inteligência
e apreciável cultura, foi um dos grandes
advogados de Florianópolis e do Estado.
Era positivista. Repetia em suas aulas que o direito
é um fenômeno social. Isto de manhã.
À tarde, o querido prof. Othon Gama d’Eça,
catedrático de Direito Romano, católico
e irmão do Senhor dos Passos, ensinava-nos
que o direito é um fenômeno natural.
Provocado por um aluno sobre esta contradição,
e perguntado em que se devia acreditar, respondeu
o prof. Moura Ferro, com um sorriso, que mal disfarçava
a simpatia e a amizade que devotava àquele
seu colega e amigo: “O Gama d’Eça,
sendo professor de Direito Romano, está
dois mil anos atrasado...”
Seguiu-se imediatamente a aula de Economia Política,
ministrada pelo catedrático prof. Henrique
da Silva Fontes, que seria mais tarde Diretor
da Faculdade de Direito, em sua gestão
tendo sido construído o prédio que
por longos anos nos abrigou, à rua Esteves
Júnior. Foi também fundador e diretor
da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras, que ocupou o primeiro bloco construído
no Campus Universitário, com recursos estaduais,
no Governo Heriberto Hülse. Deveu-se, aliás,
à insistência do prof. Henrique da
Silva Fontes a construção deste
Campus Universitário, pois havia prestigiosas
opiniões no sentido de se manterem as diversas
unidades funcionando nos prédios que já
ocupavam, no centro da cidade. Natural de Itajaí,
fixou-se desde moço em Florianópolis
e aqui se casou, constituindo família igualmente
numerosa e respeitável. Professor, historiador,
biógrafo do benemérito Irmão
Joaquim, filólogo, Secretário de
Estado da Fazenda, Juiz Federal substituto, autor
de apreciados livros escolares por longos anos
adotados nas escolas primárias de Santa
Catarina, Diretor da Instrução Pública
(cargo hoje equivalente ao de Secretário
da Educação), humanista, animador
de atividades culturais, presidente do nosso centenário
Instituto Histórico e Geográfico,
foi uma das maiores figuras de Santa Catarina.
Quem foram os alunos que assistiram a essas
aulas inaugurais? Sabe-se, pelo noticiário
da imprensa, que eram 23, sendo 21 aprovados no
exame vestibular e dois anteriormente matriculados
na Faculdade de Direito do Paraná. As diferentes
notícias publicadas nos dois diários
locais, “O Estado” e a “República”,
mencionam o mesmo número, ou seja, 23,
mas não publicam seus nomes. Entretanto,
no livro que conta a história da nossa
Faculdade, sobretudo a de seus primeiros tempos,
escrito pelo brilhante e inesquecível prof.
Renato Barbosa, a quem todos devemos imensa gratidão
por haver ele se encarregado daquele trabalho,
são mencionados 16, a saber: Emmanuel da
Silva Fontes, Aldo Guilhon Gonzaga, Carlos Büchele,
Francisco de Salles dos Reis, Oslim de Souza Costa,
Ary Pereira e Oliveira, Altamiro Lobo Guimarães,
Wilmar Orlando Dias, Aristeu Ruy de Gouvêa
Schiefler, Carlos Francisco Sada, Mário
Mafra, Maurício Moreira da Costa Lima,
Luiz de Souza, Nicolau Glavan de Oliveira, José
Boabaid e Gervásio Nunes Pires. Na relação
dos bacharelandos de 1937, primeira turma da Faculdade,
constante do mesmo livro, há, entretanto,
18 nomes. Dos matriculados em 1932 não
figura na referida relação Francisco
Salles dos Reis, nela aparecendo, em compensação,
os nomes de Celso Mafra Caldeira de Andrada, Rubens
de Arruda Ramos e Zenon Pereira Leite.
Desses primeiros alunos e primeiros formados
pela nossa Faculdade, existem, quanto sei, o dr.
Luis de Souza, ex-Deputado Estadual e Secretário
de Estado no Governo Irineu Bornhausen e o Des.
Aristeu Ruy de Gouvêa Schiefler, que seguiu
a carreira da magistratura, como seus colegas
Ary Pereira e Oliveira e Gervásio Nunes
Pires. O Des. Aristeu, quase nonagenário,
reside em Florianópolis. O dr. Luis de
Souza há muitos anos transferiu residência
para o Rio de Janeiro.
A Faculdade de Direito logo caiu na simpatia
da sociedade florianopolitana, que bem se apercebia
do que aquela novidade representava para a cidade
e o Estado e, individualmente, para muitos jovens
que não teriam condições
de demandar centros maiores, em busca da ambicionada
formação universitária.
O Des. José Arthur Boiteux, a quem Renato
Barbosa chama de “irmão esmoler”,
saiu a pedir a colaboração de quem
pudesse presta-la. É sabido que o comerciante
Euclides Pereira, o saudoso Quidoca, proprietário
do Café fronteiro ao primeiro prédio
em que funcionou a Faculdade, no começo
da rua Felipe Schmidt, doou a campainha destinada
a bater os sinais para o início e o término
das aulas. O destacado comerciante de Tijucas,
João Bayer, que entre os futuros professores
da nossa Casa viria a ter um filho e dois netos,
os saudosos drs. João Bayer Filho e João
Bayer Neto, e o prof. Ernany Bayer, que seria
também Reitor da nossa Universidade Federal,
doou a mesa, a sólida mesa de madeira lavrada,
que por muitos anos testemunharia os atos mais
importantes não só da própria
Faculdade quanto da vida cultural de Florianópolis,
sendo de lembrar que no salão nobre do
velho prédio da rua Esteves Júnior,
onde nós conhecemos aquela mesa, que tinha
num dos cantos uma pequena placa de metal registrando
a doação e o nome do doador, foi
realizada a reunião de fundação
da Faculdade de Filosofia, depois da de Medicina
e funcionou, inicialmente, a Reitoria da Universidade
Federal. A referida mesa, na ocasião de
sua doação, destinou-se à
sala de reuniões da Congregação
dos Professores. Onde andará? Onde andarão
as belas cadeiras de espaldar alto do austero
doutoral, onde se assentavam os professores para
assistirem aos atos solenes ou às conferências
ou exames para o magistério?
Eis uma relação, evidentemente
incompleta, de algumas doações feitas
à Faculdade, por aquele tempo, e respectivos
doadores. Para a Biblioteca, além do próprio
des. José Arthur Boiteux, o farmacêutico
Ney Luz, o almirante Henrique Boiteux e até
o embaixador do México no Brasil, dr. Afonso
Reyes, prestigioso jurista a quem o “irmão
esmoler” também recorreu, ofereceram
dezenas de volumes Uma apólice de seguros
contra fogo, quitada, foi presenteada pela Companhia
Aliança da Bahia, através de seus
agentes Campos Lobo. A Cia. Telefônica Catarinense
doou um telefone, que tinha o número 1662.
O Desembargador e também fundador Sálvio
de Sá Gonzaga doou cem mil réis.
Para a aquisição de estantes destinadas
à biblioteca, os fóruns das comarcas
de Laguna, Tubarão e Blumenau, através,
suponho, de subscrições promovidas
naquelas cidades, doaram, cada um, a importância
de trezentos e setenta mil réis.O dr. Alcibíades
Valério Silveira de Souza, que seria mais
tarde Desembargador e também professor
da Faculdade, e era, à época, Juiz
de Direito da comarca da Laguna, contribuiu com
cinqüenta mil réis. O Major Lauro
Marques Linhares ofereceu um retrato do Conselheiro
Manoel da Silva Mafra. O dr. Cid Campos doou um
belíssimo medalhão com a efígie
de Ruy Barbosa. Ações do Banco de
Crédito Popular e Agrícola foram
doadas pelo também fundador prof. Othon
Gama d’Eça, pelo juiz federal e também
professor Adalberto Belisário Ramos e pelo
próprio des. José Arthur Boiteux.
Este, assinala o saudoso professor e historiador
da nossa Faculdade, Renato Barbosa, “era
quem mais dava: parece que ia mutilando sua livraria,
que não era grande, mas muito eclética,
para a organização da Biblioteca
da Faculdade, destinando à Casa que seu
idealismo fundara, as poucas obras de arte que
possuía, inclusive precioso busto em bronze
de Teixeira de Freitas e uma redução
do magnífico trabalho do grande professor
Rodolfo Bernardelli de um mapa do Estado de Santa
Catarina”.
Por ocasião da aula inaugural, os drs.
Manoel e Edgar Barreto, pai e filho, de Blumenau
mas dos mesmos Barreto do eixo Laguna, Tubarão
e Imaruí, fizeram doação
de cinqüenta mil réis cada um, para
o patrimônio da Faculdade. A Joalheria Muller
ofereceu um artístico peso de papel destinado
à mesa do Diretor. E, segundo ainda registra
a imprensa da época, “a exma. Viúva
Joaquina de Oliveira Costa ofereceu para a sala
da Congregação um lindo lucivélio,
acompanhado de uma palma de flores naturais. Este
último brinde foi colocado no altar de
São José, quando da missa ali mandada
celebrar por motivo do início das aulas
da Faculdade”.
Confessai, senhores, para vós mesmos,
já que não é oportuno faze-lo
em público, vossa ignorância do que
seja lucivélio. E dela não vos envergonheis,
pois será raridade e verdadeiramente digna
de admiração a criatura que o souber.
Posso garantir-vos que, às vésperas
de completar sessenta e seis anos de idade, tendo
sido sempre um grande leitor, inclusive de livros,
papéis e jornais antigos, nunca se me apresentou
tal palavra. Fiquemos todos sabendo, então,
graças ao prestigiado e moderno dicionário
de Antônio Houaiss, que a palavra não
é “lucivélio”, e sim
“lucivelo”, sem “i”, e
se trata de um neologismo proposto por um certo
A. de Castro para substituir, na linguagem corrente
brasileira, o vocábulo francês “abat-jour”.
Faz sentido: “luci” do latim “lux”
(luz) e velo do latim “velare” (velar,
cobrir) = o que cobre a luz. Faz sentido, mas
está à vista que não pegou
a forma proposta. O que a respeitável viúva
Joaquina doou, pois, para a nossa Faculdade, foi
mesmo um prosaico abajur...
A Faculdade de Direito de Santa Catarina depressa
se inseriu, destacada e atuantemente, na vida
social e cultural da cidade e do Estado. Exemplo
disso é que, no dia seguinte ao do início
das aulas, já os estudantes se reuniam,
após a última aula, para tratarem
das homenagens que seriam prestadas à memória
do Cons° Manoel da Silva Mafra, por ocasião
da passagem do 25° aniversário do seu
falecimento, a 11 de maio daquele ano de 1932.
Bons tempos! Hoje raríssimos estudantes,
de todos os níveis, saberão sequer
quem foi o Cons° Mafra... Poucos anos depois,
dos mesmos estudantes de Direito partiria a iniciativa
e a mobilização para se erguer um
modesto monumento a José Boiteux, o busto
em bronze que hoje se encontra no pátio
interno do Centro de Ciências Jurídicas,
como esteve durante muitos anos em igual espaço
do velho prédio da rua Esteves Júnior.
Dois dias depois da aula inaugural, ou seja, a
5 de maio, realizava-se na sala da Congregação
uma reunião do Instituto dos Advogados
de Santa Catarina. A Faculdade, assim, ia sendo
ponto de convergência e de partida para
movimentos culturais, principalmente relacionados
com a área jurídica.
Senhores:
Sou de falar e escrever pouco, porisso me sinto
indo muito longe, já, nessas narrativas
e evocações. A Faculdade de Direito
de Santa Catarina, hoje Centro de Ciências
Jurídicas da Universidade Federal de Santa
Catarina, é um patrimônio moral e
cultural dos catarinenses. Fez história
e tem história. Foi fruto do mais puro
idealismo e amor à nossa terra, de um punhado
de homens valorosos, que acudiram de pronto ao
toque de reunir daquele benemérito e incansável
José Arthur Boiteux.
Para encerrar estas palavras, reproduzo as que
escrevi, há vinte anos, no prefácio
do livro “Cofre Aberto”, do saudoso
e brilhante prof. Renato Barbosa: “Quem,
hoje, analisar a relação dos nomes
dos vinte e cinco fundadores da Faculdade de Direito
de Santa Catarina, ali encontrará escritores,
chefes políticos de diferentes facções,
Juizes, Desembargadores, presidentes da secção
catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil,
deputados estaduais, deputados federais, Secretários
de Estado, Presidentes do Tribunal de Justiça,
Governadores, Ministro, Presidente da República.
Que outro grupo, ao mesmo tempo tão restrito
e tão qualificado, reuniu-se, em tempo
algum, para qualquer outro empreendimento, em
Santa Catarina? É certo que o que eles
fizeram (mas não “como” fizeram)
outros fariam, mais cedo ou mais tarde. O que
vale ressaltar, porém, o que ficou como
perene lição e luminoso exemplo,
foi o seu idealismo, o seu desprendimento, a sua
disposição de servir. Quem hoje
se lançaria a semelhante iniciativa sem
medir viabilidade econômica e a rentabilidade
do investimento? Os tempos são outros,
dir-se-á. É bem de ver que são
outros. Não que tenham desaparecido as
pessoas idealistas, desinteressadas e dispostas
ao sacrifício pessoal pelo bem comum. Numerosas
obras de benemerência e de interesse comunitário,
aí estão para atesta-lo. Mas em
termos de ensino universitário, a verdade
é que já não se fazem pioneiros
como antigamente”.
Essas palavras, escritas, como ficou dito, há
vinte anos, não perdem e nunca perderão
sua atualidade. Honra, pois, àqueles pioneiros,
valentes plantadores de boa semente, que vingou
e deu frutos. Minha geração foi
a continuadora daquela. E no momento em que saio
de cena , pois estou a requerer minha aposentadoria,
depois de 36 anos de magistério na nossa
velha Faculdade de Direito, tenho a esperança
de que aqueles valores que preservamos não
venham a morrer em meio ao utilitarismo e a certa
vulgaridade que caracterizam estes nossos tempos
difíceis. Deus assim possa prover, para
honra dos que nos antecederam e para exemplo dos
que virão depois.
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