Jorge Luis Costa Beber
Juiz de Direito - Criciúma
Santa Catarina
Na ação de alimentos, como ocorre
em qualquer demanda envolvendo litigiosidade,
também incidem os dizeres previstos no
art. 333 do CPC, pois provar, nas palavras de
José Francisco Pellegrini, é essencial
para o êxito do processo. Ainda que admitido certo temperamento diante
das peculiaridades da ação alimentar,
não se pode olvidar que ao autor incumbe
demonstrar os fatos constitutivos do seu direito,
que podem ser resumidos na prova da relação
de parentesco com o réu, as suas necessidades,
assim como as possibilidades daquele contra quem
a ação é dirigida.
Alusivamente à prova de parentesco, que
obrigatoriamente deverá ser documental,
não se vislumbra maior dificuldade para
sua produção, bastando, via de regra,
tão-somente a apresentação
da certidão de nascimento ou de casamento
da parte demandante.
Do mesmo modo, no que respeita às necessidades
daquele que reclama o pensionamento almejado,
não existem maiores entraves, devendo,
apenas, tanto quanto possível, sem um rigor
extremado, ser demonstrada a inexistência
de meios suficientes para respectiva manutenção,
sendo de convir que em muitos casos, mormente
naqueles envolvendo menores impúberes sob
a guarda da mãe desempregada, tal necessidade
é até mesmo presumida.
A maior dificuldade do demandante, fundamentalmente,
reside na obtenção das provas pertinentes
às possibilidades do réu para arcar
com a verba alimentar perseguida, máxime
quando não ostenta ele a condição
de simples assalariado, funcionário público
ou militar, categorias que possibilitam a verificação
dos respectivos ganhos através da simples
análise da folha de pagamento, demonstrativo
de salários, proventos, subsídios
ou soldo.
Não obstante a ampla ensancha probatória
admitida nas ações de alimentos,
remarcadas, segundo Yussef Said Cahali, com grande
carga de inquisitividade, é inocultável
que o demandante, em determinadas circunstâncias,
encontra sérias e muitas vezes insuperáveis
dificuldades para comprovar que o demandado possui
solvabilidade suficiente para arcar com a obrigação
alimentar no patamar pretendido.
Entre as situações mais complexas
para realização eficaz da prova
acerca dos efetivos rendimentos do demandado está
aquela que envolve a figura do titular de cotas
de sociedade mercantil, condição
que propicia as mais variadas formas para contornar,
omitir, simular e falsear os ganhos efetivamente
percebidos pelo sócio compelido a cumprir
com a sua obrigação de sustento,
viabilizando, ainda, o acobertamento do seu patrimônio
pessoal.
Em muitos casos, pais ou cônjuges insensíveis,
relapsos e irresponsáveis se utilizam da
pessoa jurídica que integram como sócios
para montar diversos estratagemas, tudo com a
inequívoca e deliberada intenção
de impedir que o autor da ação de
alimentos possa demonstrar, através de
dados concretos e escoimados de dúvidas,
os reais rendimentos por eles percebidos ou seus
respectivos bens particulares.
Assim, balanços fraudulentos são
montados, transferências fictícias
de cotas são realizadas, "testas-de-ferro"
são arregimentados, vencimentos simbólicos
são registrados, arcando a sociedade com
o pagamento das despesas pessoais do alimentante,
lançadas na contabilidade sob outra rubrica.
E mais: há casos em que incorporações
ou fusões societárias são
manobradas tão-somente com a intenção
de eclipsar os rendimentos e o patrimônio
pessoal do sócio, deliberadamente integralizado
como capital social.
Trata-se, sem dúvida, de comportamento
falaz, ignóbil sob todos os aspectos, máxime
quando evidenciado que a ostentação
de riqueza do alimentante não condiz com
o quadro de penúria ardilosamente pintado
no curso da instrução processual.
Tal situação resulta ainda mais
grave quando demonstrado que os filhos e cônjuge,
antes de quebrada a harmonia conjugal e familiar,
viviam com um padrão superior, reduzido,
repentinamente, quase à indigência.
O Judiciário, por certo, não pode
ser complacente com tamanho embuste, resultando
daí, diante do conjunto probatório
formado e com base no princípio da persuasão
racional, a possibilidade de utilização
daquilo que se convencionou denominar de Teoria
da Desconsideração da Personalidade
Jurídica, cuja gênese dimana do direito
norte-amerciano, onde esta desestimação
corporativista resultou na criação
da chamada disregard doctrine.
Com efeito, é certo, conforme disciplina
o art. 20 do Código Civil, que as pessoas
jurídicas têm existência distinta
da dos seus sócios, advertindo Pontes de
Miranda, no particular, que o patrimônio
da sociedade, uma vez personificada, não
é comum: é da sociedade.
Neste diapasão, não há nenhuma
dificuldade em reconhecer que o sócio-alimentante,
na condição de quotista, não
possui direitos líquidos, mas apenas uma
expectativa decorrente de um direito patrimonial
de crédito, condicionado à existência
de lucros, de onde resultam os seus rendimentos,
salário ou pró-labore, e à
existência de ativos líquidos, quando
dissolvida a sociedade.
O problema surge quando o respectivo sócio,
demandado em ação alimentar, busca,
sob o manto da personalidade jurídica,
turvar a sua realidade financeira e o seu acervo
patrimonial, procurando, mediante as fraudes antes
referidas, obnubilar dados que deveriam transparecer
claros e precisos, especialmente diante da requisição
judicial para apresentação dos rendimentos
por ele percebidos.
Impõe-se, então, diante de tal
comportamento, a utilização da teoria
da disregard, que, segundo Fábio
Ulhoa Coelho, não postula a invalidade,
irregularidade ou dissolução da
sociedade desconsiderada, mas tomar como episodicamente
ineficaz o ato constitutivo da pessoa jurídica,
que será ignorada apenas no julgamento
da conduta fraudulenta ou abusiva da pessoa que
a utilizou indevidamente, permanecendo existente,
válida e eficaz em relação
a todos os demais aspectos de suas relações
jurídicas.
Busca-se, através deste despretensioso
estudo, a utilização do referido
entendimento também no Direito de Família,
seguindo o exemplo de outros ramos da ciência
jurídica, que passaram a viabilizar o superamento
da autonomia da pessoa jurídica, inclusive
no aspecto patrimonial. Nesse sentido, apenas
para exemplificar, impende registrar os comandos
legais insculpidos no art. 2º, § 2º,
da CLT, arts. 133, inc. II, 134, inc. VIII e 135,
do Código Tributário Nacional, e
art. 28, §§ 2º a 5º, do Código
de Defesa do Consumidor.
Na seara familiar, em especial no tocante aos
alimentos, estimo ser perfeitamente viável
o uso da teoria ora em exame, tanto na fase de
cognição, como na execução,
sobretudo nesta última, já que a
constrição de bens para satisfação
do débito alimentar se impõe cada
vez mais como medida necessária e imprescindível,
fruto do entendimento jurisprudencial vigente,
contra o qual mantenho reservas pessoais, que
limita a utilização da modalidade
executiva prevista pelo art. 733 do C.P.C.
Certamente, mantida a redação do
art. 50 do atual Projeto do Novo Código
Civil, diga-se, em fase de ultimação
no Congresso Nacional, a teoria ora em comento
passará a ser utilizada com maior freqüência,
especialmente nos juízos monocráticos,
onde ainda se encontra alguma resistência
ortodoxa e dogmática em sentido contrário.
O professor e advogado Rolf Madaleno, reconhecido
talento gaúcho das letras jurídicas
envolvendo o Direito de Família, observa,
com sua peculiar acuidade, que no aspecto alimentar
é comum a existência de demandas
revisionais de redução ou majoração
de pensões onde o mote defensivo do devedor
alimentar baseia-se na invencível diminuição
da sua participação societária,
quando não se torna um sócio oculto,
com poderes de gestão conferidos por mandato,
em claro acinte à capacidade intelectiva
do julgador e do alimentário.
Rompendo com o absolutismo patrimonial que orna
as sociedades mercantis, proclama Gerci Giareta,
insigne magistrado riograndense, que a penetração
e desestimação deve ocorrer em todas
as hipóteses em que a solução
justa do caso concreto assim exigir, concluindo,
mais adiante, ser inconcebível que uma
pessoa carente de alimentos ou credora de obrigações
de natureza civil possa desmerecer a proteção
do ordenamento jurídico vigente, só
porque o seu devedor está sob a proteção
da personalidade jurídica, sociedade a
qual controla, desprovido, intencionalmente, de
bens particulares.
Nessa linha, não vislumbro óbice
no arrolamento ou mesmo na penhora de bens que
se encontram em nome da pessoa jurídica,
cuja integralização do capital restou
deliberadamente efetuada com o patrimônio
particular do alimentante, tudo com a inequívoca
intenção de, com o anteparo da sociedade,
ser encoberta a sua obrigação pessoal.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, por ocasião do julgamento
da Ap. Cível nº 598082162, de Uruguaiana,
figurando como Relatora a Desa. Maria Berenice
Dias, ementou, em ação envolvendo
embargos de terceiros opostos contra decisão
proferida em execução de alimentos,
que "Descabe escudar-se o devedor na personalidade
jurídica da sociedade comercial, em que
está investido todo o seu patrimônio,
para esquivar-se do pagamento da dívida
alimentar. Impõe-se a adoção
da disregard doctrine, admitindo-se a constrição
de bens titulados em nome da pessoa jurídica
para satisfazer o débito."
O mesmo Sodalício, em outra decisão,
desta feita no Agr. de Instr. nº 593074602,
de Cachoeirinha, oficiando como Relator o Des.
Paulo Heerdt, reconheceu, também em embargos
de terceiros, que "Deve ser desconsiderada
a personalidade de sociedade jurídica por
cotas formada por dois sócios, concubinos
casados pelo religioso, rejeitando-se pedido de
liminar em embargos de terceiro promovidos pela
sociedade, visando obstar arrolamento de bens
promovido pela mulher. Possibilidade de fraude
do varão, ocultado sob o manto da pessoa
jurídica. Este, em realidade, age em nome
próprio e não da sociedade."
(RJTJRGS 160, pg. 286).
Como se vê, sempre que o titular das cotas
sociais procurar abrigo na sociedade para, em
nome dela, praticar ato abusivo em detrimento
do direito alimentar alheio, é possível,
desconsiderando o ato praticado, buscar o bem
envolvido no embuste, já em nome da sociedade,
para satisfação do respectivo crédito.
A mesma despersonalização poderá
ser efetuada para, negando a eficácia resultante
de transferências disfarçadas de
cotas, reconhecer o sócio-alimentante como
o efetivo administrador da sociedade, detentor
do maior capital e, por via de conseqüência,
com esta desestimação, ser possível
rechaçar as lamúrias financeiras
expendidas.
É preciso, pois, com cautelas, evitando-se
decisões eivadas de nulidade, perscrutar
a origem do ato tipo por abusivo e fraudulento,
apurando-se quem efetivamente agiu, ou seja, a
pessoa jurídica ou se foi ela (sociedade)
utilizada como mero instrumento pelo sócio
devedor da obrigação alimentar.
Comprovada a segunda hipótese, havendo
nexo entre o ato praticado e o prejuízo
ocasionado, impõe-se prestigiar a realidade
em detrimento da aparência, desconsiderando
a personalidade da pessoa jurídica para
não reconhecer os efeitos daquele abuso
contra os interesses do credor alimentar .
Gize-se, finalmente, que a obrigação
alimentar abarca um dos direitos mais sagrados
e fundamentais para a dignidade humana e à
própria vida, razão por que as questões
envolvendo a disregard, embora com as cautelas
necessárias, deverão ser implementadas
sem maiores formalidades, independentemente dos
complexos e sempre demorados procedimentos para
a anulação do ato abusivo, assegurado,
evidentemente, o respectivo contraditório.
x.x.x.x.x.x.x.x.x
Bibliografia:
Cahali, Yussef Said, Alimentos, 2ª ed.,
RT, pg. 628;
Coelho, Fábio Ulhoa, O empresário
e os Direitos do Consumidor, Saraiva, 1994, pg.
215;
Costa Beber, Jorge Luis; Jurisprudência
Catarinense, vol. 79, pg. 27.
Giareta, Gerci, Revista Ajuris, pg. 131;
Madaleno, Rolf, Direito de Família Aspectos
Polêmicos, Livraria do Advogado, 1988, pg.
29;
Pellegrini, José Francisco, Revista Ajuris
nº 16, pg. 45;
Pontes de Miranda, Tratado, vol. 49, § 5.178,
nº 1;
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