Mario Antonio Lobato de Paiva (*)
"É num certo sentido, pelo trabalho
que o homem se torna mais homem"
João Paulo II
No capitalismo de concorrência,
caracterizado pela existência de uma multiplicidade
de empresas individuais ou familiares, as concepções
econômicas dominantes afirmavam como princípio
ordenador da vida econômica a concorrência
individual em todos os domínios: tanto
no mercado dos produtos como nos dos fatores de
produção, incluindo a força
de trabalho. Na concorrência, como mão
invisível, assentaria a harmonia do sistema.
Supondo a existência de uma ordem natural
da economia fundada na propriedade e na liberdade,
defende-se uma iniciativa econômica privada
assente na liberdade de empresa e na liberdade
de concorrência e colocada ao abrigo da
intervenção pública. A livre
concorrência no plano econômico pressupõe
a liberdade econômica face ao Estado. Exige
deste o abstencionismo econômico.
As concepções jurídicas
assentam, por isso, na teoria da autonomia da
vontade: a vontade individual, e só ela,
é soberana como fonte criadora de direitos
e obrigações. As relações
econômicas regem-se pelas normas gerais
do direito privado, não existindo uma ordem
jurídica própria da economia a qual,
a existir, seria contrária à suposta
ordem natural da sociedade. Reconhecem-se dois
institutos jurídicos fundamentais: a propriedade
e o contrato. A propriedade privada garante o
domínio dos meios de produção,
da empresa. O contrato permite ao capitalista
adquirir livremente os meios de produção
e a força de trabalho de que necessita.
As relações jurídicas estabelecem-se
entre pessoas livres e teoricamente iguais, sem
consideração pelas sua características
econômicas.
O Estado não emite normas
jurídicas para regular diretamente a vida
econômica. As concepções filosóficas
inspiram as jurídicas: a liberdade afirma
os valores individuais de cada cidadão
contra os valores coletivos, a igualdade baseia
a reivindicação de supressão
de privilégios, com a afirmação
do princípio da igualdade perante a lei.
As concepções indicadas
não poderiam deixar de influenciar fortemente
a regulamentação jurídica
do trabalho assalariado.
Em nome do princípio da
igualdade perante a lei, é intolerável
a existência de um direito especial para
os trabalhadores assalariados. O regime jurídico
especial para os trabalhadores assalariados. O
regime jurídico do trabalho assalariado,
no direito individualista e liberal, vai Ter como
bases a liberdade de trabalho, que suprime os
constrangimentos extra-econômicos à
prestação de trabalho; a autonomia
da vontade, em que se funda a livre e exclusiva
determinação das condições
de trabalho e do salário pela vontade das
partes; a configuração do contrato
como mais um aluguer de uma mercadoria como as
outras (a força de trabalho); a proibição
de associações de trabalhadores
ou de patrões e de coligações
a fim de deixar isoladas, frente a frente, a oferta
e a procura de trabalho de acordo com o fundamento
livre das leis de mercado.
Não há, nestas
circunstâncias, um regime jurídico
do trabalho dotado de autonomia, porque não
há "leis do trabalho". As leis
da época sobre estabelecimentos perigosos
e insalubres não visam a proteção
da segurança e saúde dos trabalhadores,
mas sim do público em geral. Eram normas
de polícia, de acordo com as funções
do Estado de então, pertencentes ao direito
administrativo. O trabalho assalariado regia-se
pelo direito comum aplicável a quaisquer
outras relações entre sujeitos privados,
ou seja, o direito civil.
O direito aplicável ao
trabalhador assalariado era, assim, um direito
individualista e liberal na forma, anti-operário
no conteúdo. Porque a realidade econômica
e social se mostrou muito contrária à
idealização feita pelos teóricos
do liberalismo econômico.
No caso do contrato de trabalho,
representado idealmente como um acordo livre de
vontades entre pessoas iguais que prestavam reciprocamente
coisas de valor equivalente, esquecia-se que o
trabalhador apenas exercia a sua "liberdade"
de trabalhar sob as ordens de outrém porque,
despojado de meios de produção,
necessitava de meios de sobrevivência. E
logo isto mostra que as partes só teoricamente
eram iguais. Na realidade, o trabalhador que celebra
o contrato aceita condições pré-fixadas
pela parte economicamente mais forte. E o individualismo
que em nome dessa ficção de igualdade
entre as partes , proibia a coligação,
a associação e a greve dos trabalhadores
ignorava a solidariedade existente entre eles,
como sujeitos econômicos concretos que nada
tem a ver com os mitificados sujeitos de direito.
O direito liberal do trabalho assalariado, de
forma muito clara, vem evidenciar o seu caráter
objetivo de instrumento de domínio da burguesia
ascendente sobre a classe dos assalariados.
Uma mão-de-obra abundante
e carecida de emprego remunerado, desprovida de
meios de defesa coletiva aceita trabalho por qualquer
preço, nas condições mais
degradantes (exército industrial de reserva).
A incrível miséria da classe operária
é a impressionante conseqüência
da servidão econômica que um tal
regime jurídico consente: o trabalho de
crianças desde os seis anos, a extensão
brutal da jornada de trabalho (16 horas e mais,
por vezes sem interrupção), os salários
baixos, as doenças profissionais, a vida
degradada, a morte prematura, de que tantos testemunhos
ficaram.
Perante uma tal situação,
tem lugar as primeiras lutas operárias
e começa o despertar da consciência
dos trabalhadores. Não cessará de
se desenvolver, a partir de então, a expansão
da ideologia socialista e a organização
do Movimento Operário. Alguns marcos: A
Revolução de 1848 em França,
a supressão do delito de coligação
e da conseqüente proibição
da greve (1864, sob Napoleão III) culminando
uma fase de organização clandestina
dos trabalhadores, a Associação
Internacional dos Trabalhadores (1866), a Comuna
de Paris (1871).
O próprio desenvolvimento
do capitalismo, afinal, levaria à organização
e à luta dos trabalhadores que foi e é
determinante para a formação e progresso
do direito do trabalho.
O processo de concentração
do capital, aliado ao progresso técnico,
alterou profundamente as bases em que assentava
o capitalismo de concorrência. A economia
deixou de ser (ou nunca foi afinal) um mundo de
pequenas empresas individuais e familiares concorrendo
livremente entre si segundo as leis de mercado.
A grande empresa, com a criação
das sociedades por ações, substitui
a propriedade individual no domínio sobre
a indústria. O aumento do poder das grandes
empresas com a formação dos cartéis
e dos trustes, permite-lhas ditarem os preços
e passarem a dominar o mercado. O processo econômico,
em parte importante, deixa de ser regido pela
vontade livre dos contraentes.
A transformação
da economia leva a pôr em crise os dois
grandes institutos (propriedade e contrato) da
ordem jurídica liberal. O direito privado
revela-se incapaz de regular a vida econômica
e de assegurar o desenvolvimento da sociedade.
O mito da neutralidade do Estado perante a economia
, que demonstra a sua incapacidade de se auto-regular,
cai por terra. Os novos institutos jurídicos
de que a economia carece obrigam a uma intervenção
cada vez maior do Estado na vida econômica.
A I Guerra Mundial vem cortar de vez a tradição
do liberalismo econômico. O direito passa
a regular diretamente domínios cada vez
mais alargados da ordem econômica . Natural
é que não lhe escape a regulamentação
do trabalho assalariado.
O reconhecimento pela ordem jurídica
dos sindicatos operários e do seu direito
de celebrarem contratos aplicáveis a todos
os membros da categoria por eles representada
(convenção coletiva)- quando ocorre,
embora tardiamente e em conseqüência
de uma luta encarniçada- vem também
alterar de maneira profunda o contrato de trabalho
introduzindo limitações à
autonomia da vontade das partes e superando o
caráter meramente inter-individual da relação
de trabalho: na realidade, quando os assalariados
deixam de se contrapor isoladamente ao empregador,
e podem recorrer ao sindicato como representante
da coletividade por eles constituída, é
em certa medida a igualdade real entre as partes
que se estabelece ou, melhor, a desigualdade que
se atenua.
O alargamento da intervenção
do Estado na economia já foi considerado
o único meio de evitar a destruição
das formas econômicas capitalistas atuais.
Compreende-se deste modo que o intervencionismo
do Estado não tenha sido, fundamentalmente,
ditado pelo objetivo de salvar os operários
da incrível miséria a que o funcionamento
do sistema os conduzira inexoravelmente.
Mas o desenvolvimento numérico
e o crescer da consciência das grandes massas
operárias de que o sistema carecia e cujo
o peso político e força organizativa
aumentam, acabarão - no curso de um processo
lento e contraditório- por limitar a supremacia
das classes dirigentes e conferir um sentido social
ao intervencionismo do Estado.
Surgem leis de proteção
ao trabalhador. É um processo iniciado
timidamente em meados do século XIX e que
se prolongará dificilmente desde então,
em problemáticas condições
de efetividade do direito legislado a cuja aplicação
o patronato resiste. A intervenção
do Estado conhecerá um desenvolvimento
mais significativo no termo da I Guerra Mundial
sob o impacto, designadamente, da Revolução
Soviética.
Essas leis têm três
direções, diferentes mas complementares:
1º A limitação
da liberdade contratual, subtraindo ao domínio
da autonomia da vontade e definindo por lei imperativa,
matérias cada vez mais extensas do contrato
de trabalho como fonte de direitos e obrigações
entre as partes (duração e horário
de trabalho, despedimentos, higiene e segurança,
etc...)
2º A criação
de uma administração pública
do trabalho (Ministério do Trabalho)
e de uma jurisdição especializada
do trabalho (Tribunais do Trabalho)
3º O reconhecimento
de um poder de determinação coletiva
das condições de trabalho, deixando
de punir criminalmente a coligação
e a greve, reconhecendo as associações
sindicais e o respectivo direito de celebrarem
com os empregadores convenções coletivas
de trabalho. Este é o aspecto que mais
influenciará toda a evolução
posterior e que dará conformação
ao direito contemporâneo.
É a partir destes três
fatores- a limitação da liberdade
contratual, a criação de uma administração
pública do trabalho e o reconhecimento
de um poder de determinação coletiva
das condições de trabalho - que
o direito do trabalho virá formar-se, autonomizando-se
do direito civil, ganhando corpo com as chamadas
leis sociais.
Pode-se assim dizer que o direito
do trabalho, longe da visão idílica
e manualística que o configura como um
direito essencialmente "bom", de proteção
do trabalhador, preenche, pelo menos, uma dupla
função: ele protege com ostentação,
mas realmente, a classe operária de uma
exploração desenfreada, mas ele
organiza, não menos realmente, esta exploração
e contribui para a justificar. Tal como o trabalho
desenvolve o capital, o direito do trabalho participa
do direito do capital, mas tem por objeto regular
a exploração sobre que repousa o
sistema econômico. A sua emergência
corresponde pois à passagem de uma ordem
jurídica que ignora o trabalho para um
dispositivo que reconhece a sua existência
sem lhe modificar fundamentalmente a condição.
Melhor, naturaliza, a exploração,
objetivando-a.
Um direito cuja contínua
formação assenta determinantemente
na luta dos trabalhadores. Um direito conquistado
que registra e serve o progresso social, bem como
a melhoria das condições dos trabalhadores
não deixa por isso de ser- e até
por isso mesmo é que pode ser- um direito
perpetuador da divisão social do trabalho.
(*) Mário Antônio Lobato de Paiva
é advogado-titular do escritório Paiva Advocacia;
Professor da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Pará; Membro do Instituto Brasileiro
de Direito Constitucional; Membro da Union Internationale
des Avocats sediado en París, Francia; integrante
de la Red Mexicana de Investigadores del Mercado
Laboral; colaborador da Revista do Instituto Goiano
de Direito do Trabalho; Revista Forense; do Instituto
de Ciências Jurídicas do Sudeste Goiano e Revista
de Jurisprudência Trabalhista "Justiça do Trabalho";
Colaborador da Revista Síntese Trabalhista; Colaborador
do Boletim Latino-americano da Concorrência; Autor
de diversos artigos e dos livros "A Lei dos Juizados
Especiais Criminais" editora forense, 1999 e "A
Supremacia do advogado em face do jus postulandi",
editora LED, 2000. |