Dissolução
do casamento e a partilha de quotas sociais.
Jorge Luis Costa Beber
Juiz de Direito
Criciúma - Santa Catarina
O Direito de Família, em algumas oportunidades,
para solucionar determinados conflitos, necessita
buscar auxílio em outros ramos da ciência
jurídica, mormente no Direito Comercial.
Assim ocorre, por exemplo, quando a desconsideração
da pessoa jurídica se faz necessária
para assegurar aos alimentandos o recebimento
da prestação alimentar por parte
do alimentante, sócio de pessoa jurídica,
que dela se utiliza para eclipsar seus reais vencimentos.
Nesse sentido, aliás, a valiosa abordagem
efetuada pelo advogado gaúcho Rolf Madaleno,
que, além da questão alimentar,
estendeu o estudo da disregard para outras
hipóteses envolvendo o Direito de Família,
como a partilha de bens dos cônjuges, além
da sua incidência no âmbito sucessório.
Do mesmo modo, litígios envolvendo o instituto
do aval prestado por um dos cônjuges ou
os conflitos emergentes das sociedades comerciais
formadas por marido e mulher também exigem,
muitas vezes, subsídios do Direito Comercial
para resolução da lide instaurada
na seara familial.
Situação semelhante ocorre, por
ocasião da dissolução do
casamento, quando a partilha de bens envolve a
participação societária de
um dos cônjuges, máxime quando não
for possível uma divisão consensual,
alcançada, na maioria das vezes, mediante
a compensação do valor daquelas
quotas sociais por outros bens do acervo conjugal.
Todavia, há casos em que o único
patrimônio partilhável do casal se
resume nas quotas sociais que um dos cônjuges
possui na sociedade onde exerce as suas atividades
laborais. Nesta hipótese, por certo, maior
será o conflito de interesses se a sociedade
comercial ostentar patrimônio considerável,
em flagrante contradição com a vida
modesta mantida pelos cônjuges.
Na verdade, sabe-se, e isto é uma realidade
para aqueles que militam no campo do Direito de
Família, que muitos maridos, vislumbrando
um possível rompimento do conúbio
matrimonial, movidos por sentimentos mesquinhos
e com manifesta avareza, procuram manter nas sociedades
onde figuram como sócios todo o patrimônio
que em situações normais deveria
estar em nome do casal.
Assim, deflagrado o processo de separação
ou divórcio, como forma de preservar a
meação do cônjuge que não
participa da pessoa jurídica, é
comum o ajuizamento de pretensões absolutamente
equivocadas, como o arrolamento cautelar dos bens
da sociedade comercial, o pedido de antecipação
de tutela para ingresso na pessoa jurídica
mediante repasse de 50% do capital social mantido
pelo cônjuge/sócio, ou, ainda, requerimento
para passar a receber, sobre as receitas da sociedade
(aluguéis, vendas, aplicações,
etc...), percentual equivalente a metade do
montante das quotas cuja titularidade pertence
ao cônjuge da parte demandante.
Nesta contingência, como forma de evitar
a deflagração de pleitos desarrazoados,
impõe-se um correto exame acerca da incidência
dos ditames do Direito Comercial para solucionar
a partilha da participação societária
de um dos cônjuges por ocasião da
dissolução do matrimônio.
Impende observar, desde logo, que a quota de
uma sociedade mercantil, que não se confunde
com as ações de uma sociedade anônima,
é eminentemente ilíquida. Significa
dizer, em outras palavras, que a ação
nada mais é do que um título de
crédito que ostenta liquidez, pode ser
negociada no mercado de capitais e admite a partilha
imediata, enquanto a quota de uma sociedade por
responsabilidade limitada, diversamente, faz parte
do próprio capital social e só à
sociedade pertence, servindo, inclusive, de garantia
aos seus credores.
Diante destas considerações, lícito
é concluir que a quota de uma sociedade
mercantil não se confunde com o patrimônio
pessoal de cada um dos seus sócios, consoante
expressamente consignado no art. 20 do Código
Civil, merecendo, no particular, a seguinte observação
de Pontes de Miranda: "O patrimônio da
sociedade, uma vez personificada, não é
comum: é da sociedade...".
Destarte, quando um dos cônjuges ingressa
em uma sociedade por quotas e integraliza o seu
capital, o montante utilizado para esta finalidade,
que antes pertencia exclusivamente a ele ou ao
casal, dependendo do regime de bens adotado por
ocasião do matrimônio, passa a pertencer
tão-somente ao acervo societário.
Resulta daí, então, ao sócio
quotista, um direito patrimonial de crédito,
diga-se, absolutamente aleatório, pois
estará condicionado à existência
de lucros líquidos, ou, ainda, se houver
a respectiva dissolução, à
existência de ativos líquidos.
Como se vê, não se pode admitir,
nos autos da ação de separação
ou divórcio, que a partilha realizada pelos
cônjuges alcance a divisão do patrimônio
da empresa da qual qualquer um deles participa
como sócio, implementada mediante simples
cálculo aritmético com base no capital
social.
No mesmo diapasão, não há
possibilidade do cônjuge/sócio, ao
seu talante, sem a participação
dos demais titulares do capital social, partilhar
suas quotas, alterando o contrato social, para
incluir o outro cônjuge na sociedade, resolvendo,
deste modo, a divisão dos bens do casal.
A vedação acima referida, cominada
com pena de nulidade contratual, está prevista
no art. 334 do Código Comercial, que impede
a cedência por um dos sócios, para
terceiros, da parte que tiver na sociedade, ou,
ainda, fazer-se substituir no exercício
das funções que nela exerce, sem
expresso consentimento de todos os outros sócios.
Mas é o próprio art. 334 do Código
Comercial que indica o caminho a ser adotado para
partilha das cotas sociais no âmbito da
separação dos cônjuges, disciplinando,
na sua parte final, que o sócio poderá
associar um terceiro à sua parte na sociedade,
sem que por este fato o associado fique considerado
membro da sociedade.
No mesmo sentido, também, o comando insculpido
no art. 1.388 do Código Civil, que admite
que entre o sócio e um estranho, no contexto
da fração societária do primeiro,
haja uma associação, mas veda o
ingresso deste terceiro, sem a aquiescência
dos demais sócios, na sociedade.
Viável, pois, admitir, que a partilha
decorrente do regime de bens escolhido pelo casal
não poderá interferir na esfera
jurídica de terceiros, sendo ilegal compelir
os demais sócios de um dos cônjuges
a aceitar o outro como sócio ou sócia,
o que seria efetuado através da simples
transferência de quotas.
O que ocorre, então, é que a partilha
dos bens do casal, por força do permissivo
contido na parte final do art. 334 do Código
Comercial e art. 1.388 do Código Civil,
importará na formação de
uma segunda sociedade ou subsociedade entre o
cônjuge titular das quotas e o outro cônjuge,
sem que este último se torne sócio
dos demais integrantes da referida pessoa jurídica.
A viabilidade desta associação
à quota (convention de croupier, Unterbeteiligung),
definida por Cunha Gonçalves como agregação
de sócio, já era prevista pelo
antigo Código de Seabra, cujo art. 1.271
consignava que "não carece o sócio
do consenso dos outros, para se associar com um
terceiro, em relação à parte
que tem na sociedade".
Maria Helena Diniz, sobre a matéria, anota
que "O sócio poderá associar
um estranho ao seu quinhão social, sem
o concurso dos outros, porque formará com
ele uma subsociedade, que nada terá que
ver com os demais sócios; porém
não poderá, sem aquiescência
dos demais, associá-lo à sociedade
de pessoas, alienando sua parte, ante a relevância
do intuito personae."
Clóvis Beviláqua, por sua vez,
enfatiza: "O estranho associado no quinhão
do sócio constitui, com este, uma subsociedade,
mas não é sócio dos outros.
Socii mei socius meus socius non este."
Ainda, no mesmo diapasão, J. X. Carvalho
de Mendonça e Bento de Faria, para quem
"o terceiro associado pelo sócio à
sua parte, permanece completamente estranho à
sociedade primitiva; e não pode, entre
outras coisas, exigir que seu nome figure na firma
social.".
José Waldecy Lucena, apreciando o tema,
sustenta que a associação de uma
terceiro na quota do sócio configura uma
comunhão de eficácia externa,
onde "o sócio associa à sua parte
no capital social dos demais comunheiros, os quais
não são considerados membros da
sociedade (comunheiros não sócios),
não entrando eles jamais em relação
com esta (Cod. Com., art. 334, última parte;
Cod. Civil, art. 1.388, 1ª parte)." Firmam
os comunheiros, entre si, um ajuste particular,
feito, segundo Egberto Lacerda Teixeira, "à
margem da sociedade principal e à sua inteira
revelia", por isso mesmo denominada de societas
societatis.
Como se vê, não é inválida
esta associação de um cônjuge
nas quotas sociais do outro, ocorrendo, todavia,
ineficácia da referida convenção
em relação à pessoa jurídica,
contra quem será inoponível, consoante
preleciona Pinto Furtado.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina,
por ocasião do julgamento do Agravo de
Instrumento nº 96.003109-0, de Blumenau,
Rel. Des. Carlos Prudêncio, decidiu: "O
acordo celebrado entre casal em ação
de separação consensual não
pode se sobrepor ao previsto no contrato social.
A partilha de quotas pertencentes ao varão
forma apenas entre ele e sua ex-esposa uma subsociedade,
não a incluindo como sócia da empresa.
Assim, não pode ser determinado que a sociedade
primitiva transfira a sua parte das quotas para
o nome da sua ex-esposa, passando a figurar no
quadro social social sem aquiescência dos
demais.".
No mesmo sentido as decisões preferidas
na Ap. Cív. nº 50.015, de Capinzal,
Rel. Des. Orli Rodrigues (DJE de 21.01.96), Ap.
Cív. nº 49.655, da Capital, Rel. Des.
Eder Graf, além do julgado publicado na
Revista dos Tribunais nº 624, pág.
91, assim ementado: "A transferência
de cotas de sociedade de responsabilidade limitada
por força de partilha em divórcio
importa em tradição por meio de
sucessão, não fazendo da adquirente
sócia da empresa. Forma-se entre ela e
o sócio nova sociedade, a qual é
considerada res inter alios acta, quer em relação
aos demais sócios, quer aos credores sociais
por obrigações já existentes
ou futuras."
Destarte, a partilha dos bens do casal poderá
ocasionar a formação de uma associação
nova, também chamada de sociedade interna
ou negócio parciário,
formada à sombra da anterior, fazendo
com que um cônjuge passe a ser sócio
do outro nas quotas que este possui na sociedade
limitada, ficando, todavia, estranho a esta pessoa
jurídica, sob pena de vulnerar os princípios
que norteiam a affectio societatis.
Poder-se-ia, sob outro enfoque, exemplificar
a partilha das quotas sociais em face da morte
de um dos sócios, quando previsto no contrato
social que em tal circunstância a sociedade
teria continuidade com os sócios sobreviventes.
Nesta situação, o que ocorreria
seria uma espécie de co-titularidade (e
não co-propriedade) dos herdeiros do sócio
extinto, desde o momento da abertura da sucessão,
alusivamente aos lucros e vantagens que o falecido
receberia se vivo fosse.
O mesmo ocorreria na hipótese da mulher
do sócio, casada pelo regime da comunhão
universal de bens. Não haveria, por certo,
o ingresso na sociedade dos herdeiros do cônjuge
meeiro, ocorrendo, apenas, uma comunhão
entre o sócio e os respectivos sucessores,
pertinentemente aos lucros líquidos que
o primeiro viesse a receber.
Ora, assim como a morte, a separação
judicial está elencada como causa terminativa
da sociedade conjugal, conforme se infere do art.
2º da Lei 6.515/77, razão por que
o mesmo raciocínio deverá ser efetuado
para partilha dos bens do casal, passando a meeira
a ostentar uma co-titularidade dos lucros líquidos
eventualmente recebidos pelo ex-cônjuge.
Ela se torna, na verdade, como já se disse
alhures, sócia do sócio, em suas
cotas, desde o momento em que houve a homologação
da separação, sem qualquer ingerência
administrativa, deflagrada de forma pessoal e
independente, perante a pessoa jurídica
ou mesmo em relação aos demais sócios.
Dois caminhos, a partir de então, poderão
ser seguidos, ou seja, permanece a meeira recebendo
a metade dos lucros líquidos que tocariam
ao seu ex-cônjuge, ou, ao revés,
promove a avaliação do valor da
quota social, mediante apuração
de haveres, para o fim de receber em pecúnia
o montante correspondente.
Haveria, ainda, segundo J. M. de Carvalho Santos,
duas hipóteses que poderiam levar o associado
ou subsócio, estranho à sociedade,
a tomar parte nas operações sociais,
ou seja, quando agir com o conhecimento e a tolerância
dos sócios ou quando proceder como preposto
do titular das quotas.
Assim, diante das colocações até
aqui expendidas, sem embargo da posição
mais radical e ortodoxa de Bento de Farias, não
me parece desarrazoado afirmar que, partilhadas,
entre marido e mulher, as cotas sociais através
da formação daquilo que Ponte de
Miranda denominou de sociedade interna (Innengesellschaft)
ou sociedade de segundo grau, o sócio secundário
ou subsócio poderá, alusivamente
ao quinhão societário do cônjuge/sócio,
participar dos respectivos lucros sociais, ter
participação no acervo social que
for apurado quando liquidada a sociedade, tomar
parte na administração, seja como
preposto do sócio a que se associou, seja
pela aceitação dos demais sócios,
e, inclusive, como forma de dissolver a subsociedade
formada, pugnar pela apuração de
haveres daquela fração societária
a que se associou.
Há, por outro lado, um tópico que
se me afigura relevante, ou seja, a possibilidade
de um cônjuge compelir o outro, sócio
de pessoa jurídica, à prestação
de contas dos seus haveres, enquanto não
formalizada a partilha.
Com efeito, em muitas oportunidades, por deliberação
dos cônjuges, a separação
é convencionada na forma do art. 1.121,
§ único, do C.P.C., ou seja, sem a
formalização da partilha de bens,
que fica relegada para a ocasião do divórcio
ou para qualquer outro momento.
Nesta hipótese, o que ocorre é
a manutenção de um condomínio
de bens, ficando os proveitos decorrentes da pessoa
jurídica em que um dos cônjuges é
sócio sob a administração
deste.
Como se sabe, a primeira fase da ação
de prestação de contas importa na
declaração judicial da existência
do dever do réu em prestá-las, sendo
de convir, com arrimo na lição de
Adroaldo Furtado Fabrício, que "deve
contas quem quer que administre bens, negócios
ou interesses de outrem, a qualquer título."
É evidente que os cônjuges, enquanto
casados, vivendo sob o mesmo teto, não
estão obrigados ao dever de prestar contas
um ao outro dos seus negócios. Entretanto,
o mesmo não pode ser dito quando o casal
já se encontra separado, sem a formalização
da partilha, estando os bens sob a administração
de um deles.
Nesse sentido, com a clareza habitual, ensina
Humberto Theodoro Júnior: "Na vigência
da comunhão de bens, os cônjuges
entre si não se acham jungidos ao dever
de prestação de contas. A comunhão
de bens é a mais ampla possível
e não permite a separação
de cotas, nem mesmo ideal, entre os consortes.
Não há, pois, como cogitar-se de
prestação de contas de um cônjuge
ao outro.".
E prossegue: "Uma vez dissolvida a sociedade
conjugal, desaparece a comunhão universal
e os bens comuns devem ser partilhados como qualquer
comunhão que se extingue. Havendo, porém,
um interregno entre a dissolução
da sociedade conjugal e a partilha, aquele que
conservar a posse dos bens do casal estará
sujeito à prestação de contas
como qualquer consorte de comunhão ordinária.".
O Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, examinando situação análoga,
assim assentou: "Prestação de
contas. Casamento sob o regime de comunhão
universal. Obrigação inconcebível.
Separação. Obrigação
superveniente. Na constância de casamento
sob regime de comunhão universal, nenhum
dos cônjuges tem, contra o outro que administre
ou haja administrado os bens comuns, direito à
prestação de contas, porque é
indivisível o patrimônio societário.
Mas, a partir da dissolução da sociedade
conjugal, fica obrigado a prestá-las o
antigo cônjuge que continue na administração
do mesmo acervo, porque já não é
indiscernível o patrimônio de cada
um."
É certo que o regime matrimonial de bens
só se extingue com a dissolução
do vínculo matrimonial, pois desaparece
o pressuposto factual da sua instituição,
como adverte Antunes Varela.
Todavia, estimo que a aludida orientação
merece exegese mais ampla. É que, uma vez
ocorrendo a separação de corpos
entre os consortes, através de procedimento
preparatório de ulterior ação
de separação, desde a concessão
da liminar, passa a ser possível o pedido
de prestação de contas, pois o cônjuge
que permaneceu na administração
dos bens, aqui incluídas as suas quotas
sociais, passou a atuar como gestor de bens alheios,
o que o torna sujeito àquela obrigação,
sempre que o outro cônjuge exigir.
Em resumo: 1) a participação societária
de um dos consortes, mesmo casado sob o regime
da comunhão de bens, pode ser partilhada
mediante a formação de uma subsociedade
com o outro cônjuge, alusiva ao seu quinhão
societário; 2) não há ingresso
do outro cônjuge na sociedade, mas poderá
este exercer direitos sobre as quotas do cônjuge/sócio,
dentre eles o de participar dos respectivos lucros
sociais, ter participação no acervo
social que for apurado quando liquidada a sociedade,
tomar parte na administração, como
preposto do sócio ou com a tolerância
dos demais sócios e pugnar pela apuração
de haveres daquela fração societária
a que se associou, vislumbrando, assim, encerrar
aquela subparticipação; 4) o consorte,
sócio de pessoa jurídica, está
obrigado a prestar contas acerca da sua participação
societária desde o momento em que foi judicialmente
concedida a separação de corpos
dos cônjuges. |