Jorge Luis Costa Beber
Juiz de Direito de Criciúma - Santa Catarina.
A jurisprudência majoritária,
hoje, parece ter-se pacificado no consenso de
que a prisão civil do devedor de pensão
alimentícia está restrita às
últimas três parcelas devidas, devendo
as demais ser executadas na forma do art. 732
do digesto processual civil. O que se tem observado é que um expressivo
número de decisões, para não
dizer a totalidade delas, mormente na Superior
Instância, se utiliza da mencionada construção,
seja para determinar a cisão do processo
executivo, seja para conceder ordens de habeas
corpus. E assim se decide "porque este
é o entendimento jurisprudencial...", "porque
assim tem-se entendido...", além de
outras expressões do gênero, sem
que haja maior fundamentação. Apenas
a jurisprudência. Nada mais do que isto.
Arruda Alvim, comentando esta forma de apreciar
a lide, arrimada apenas em precedentes jurisprudenciais,
esclarece que a jurisprudência não
pode ser considerada, dogmaticamente, como fonte
de direito, salientando que nem os tribunais,
nem os juízes e nem os particulares a ela
estão vinculados.
Segundo o citado processualista, "Do rigoroso
ponto de vista técnico-jurídico,
nenhum juiz poderá ou deverá dizer
que decide um caso, de tal ou qual forma (embora
isso ocorra muitas vezes), porque a jurisprudência
é tal ou qual; isto não se constitui,
tecnicamente, entre nós, em fundamento
jurídico de sentença ou decisão,
o que se faz "commoditatis" ou "brevitatis causa".
A fundamentação técnico-jurídica,
entre nós, é a lei." (sublinhei)
Ora, ainda que a jurisprudência pudesse
ser concebida como fonte de direito, suficiente
por si só para arrimar uma decisão
judicial, é certo que os litígios
envolvendo matéria familiar decorrem, fundamentalmente,
de questões fáticas, sendo
lícito concluir que não se pode,
com base em uma única interpretação
jurisprudencial, resolver uma infinidade de conflitos
sociais decorrentes dos mais variados motivos
ou fatos que envolvem as relações
interpessoais.
Situação inversa, por certo, seria
a simples aplicação de um entendimento
já sufragado pelos tribunais para solução
de uma questão de direito, decorrente de
exegese legal.
Entretanto - repita-se - o inadimplemento da
prestação alimentícia deve
ser encarado como fato, cujos motivos para sua
ocorrência, e também para morosidade
da sua cobrança, deverão ser perscrutados
adequadamente pelo juiz para uma justa dição
do direito.
Assim, após este breve proêmio,
permito-me, com um despretensioso estudo e com
a máxima concessão outorgada daqueles
que sustentam o contrário, declinar os
motivos pelos quais não adiro a tal corrente
de pensamento.
Com efeito, a norma constitucional (art. 5º,
inc. LXVII) revela a excepcionalidade da medida
de prisão como meio coercitivo indireto
para o cumprimento de obrigação
civil. Compreende-se o dispositivo, marcado não
apenas por seu reflexo imediato quanto à
vedação de tal expediente vexatório
pela simples inadimplência contratual, mas
igualmente por fincar princípio comum à
exigência de créditos: acima da pretensão
à percepção da prestação
inadimplida está a dignidade da pessoa
humana. Confirma-se, portanto, a distinção,
comum entre os civilistas, quanto às duas
faces da relação obrigacional: uma,
de caráter essencialmente pessoal, vinculada
ao pressuposto ético de atendimento às
obrigações; outra, criadora de liame
do credor com o complexo de bens do sujeito passivo.
Destarte, é pensamento solidificado que
o incumprimento obrigacional traz reflexos essencialmente
patrimoniais, preservando-se a integridade física
e a liberdade individual. Reafirma-se, portanto,
a ruptura com o longevo sistema jurídico,
onde a falta de quitação das obrigações
fazia incidir a ação do credor sobre
o próprio devedor.
Sem que se pretenda retroceder a tais atrocidades
ou compactuar com atos de ilógica violência,
não se pode ignorar que o Direito atual
não pode se despir de atos de império,
nem o Poder Judiciário está ilegitimado
a fazer valer suas decisões pelo recurso
a ásperas medidas. Não se advoga,
por óbvio, a discricionária utilização
de mecanismos de força, mas à luz
do próprio ordenamento jurídico
e em consideração a específicos
conflitos de interesses, faz-se necessário
superar uma visão meramente privatística
do fenômeno obrigacional.
Na seara alimentar, particularmente, é
inconcebível firmar posicionamento independentemente
do apego a seus peculiares princípios.
Deste modo, se o crédito alimentar assume
color obrigacional, tal qual este conceito logrou
sucesso no âmbito jurídico (relação
entre credor e devedor, de caráter transitório,
envolvendo o dever de satisfação
de uma prestação, com valor economicamente
apreciável), não é menos
correto que em sua raiz a obrigação
tem espectro mais amplo. Não nasce da autonomia
privada (ao menos como regra), mas sim das relações
familiares, de cunho eminentemente institucional.
Menos do que relação de débito
e crédito, prevalece, como observa Álvaro
Villaça Azevedo, a sua caracterização
como dever. O surgimento, em razão
do não pagamento, de situação
que engloba caracteres de vínculo meramente
obrigacional, não autoriza que se eclipse
o verdadeiro substrato imanente à dívida
alimentar.
Neste passo, justifica-se o tratamento diferenciado
do inadimplemento da obrigação de
alimentos, haja vista suas óbvias idiossincrasias.
Importante, nesta seqüência, expurgar
os dogmas privatísticos pertinentes às
medidas de coerção para fazer valer
o débito reconhecido judicialmente. Não
se pode equiparar tal situação,
por exemplo, à simples ruptura de dívida
negocialmente ajustada. Aqui, diferentemente,
há interesse público manifesto.
Demais, o ordenamento jurídico encaminha-se
para o abandono de preconceitos apropriados à
visão individualista dos pandectistas,
formados na ideologia característica do
século passado. Agora, avulta o caráter
publicístico do fenômeno processual,
buscando-se incessantemente a satisfação
do credor com base no especificamente previsto
na obrigação. Assim testemunham,
por exemplo, a nova redação do art.
461 do Código de Processo Civil, que desenganadamente
busca superar a substituição da
obrigação de fazer infungível
por perdas e danos, ou os dispositivos congêneres
do Código de Defesa dos Direitos do Consumidor
(art. 84). Ora, se assim ocorre na área
genuinamente privada, muito mais há de
ser feito no campo limítrofe entre o público
e o individual, como é o Direito de Família.
De conseguinte, não se pode vislumbrar
a medida de prisão civil, que há
de suceder a irrestrita obediência ao devido
processo legal (mormente com seu inseparável
consectário do direito à defesa)
e pressupõe a falta de prova da momentânea
impossibilidade econômica do devedor, como
uma aberração do sistema legal.
Diversamente, é forma de adequação
entre o interesse individual e o social; invoca
patente conflito de interesses (busca da satisfação
das obrigações independentemente
de atos de violência e necessidade premente
do alimentando) que há se ser resolvido
em favor deste último.
Estes pressupostos são de índole
estritamente objetiva. Não se pode condicionar
a imposição da medida extrema à
inocorrência de culpa, por parte
do credor, no sentido de que sua injustificada
inércia fez diversa a natureza do crédito.
O conceito de culpa - como sinônimo de desleixo,
negligência - é estranho à
caracterização da verba alimentar.
Aliás, se culpa há de investigar,
necessariamente há de ser por parte do
devedor, e não o inverso.
Parece, isto sim, que a solução
está apenas em vedar que o credor utilize
de forma desmedida da faculdade que lhe assiste.
Logo, é tema afeto à teoria do abuso
de direito, ou seja, a utilização
de favor jurídico de modo malicioso e fora
das suas medidas ordinárias. Assim, se
o credor deixa, sem motivo justificado, de diligenciar
a oportuna cobrança das prestações
alimentares, propiciando o agigantamento do débito,
parece injusto que venha, repentinamente, ameaçar
o devedor com a perspectiva de prisão.
Nesta hipótese, por certo, o caráter
emergencial da verba alimentar é turvado.
Justifica-se, até do ponto de vista teórico,
a cisão da execução, mas
em razão de situação fática
muito especial, onde haja manifesta inconsideração
do credor para com o alimentante. Vulnerado estaria
o primado de boa-fé, igualmente potencializado
no Direito Processual Civil (art. 17, inc. II,
do C.P.C.).
Registre-se, contudo, que tanto as causas que
ensejaram o retardamento da execução,
assim como a justificativa para o inadimplemento,
poderão ser efetuadas, conforme adiante
se verá, através do procedimento
executivo previsto pelo art. 733 do C.P.C., não
me parecendo viável compelir o credor desde
logo ao aforamento de outra modalidade de execução,
apenas e tão-somente pelo fato do seu crédito
corresponder a quatro (ou mais) e não a
três meses de atraso por parte do devedor.
Pois bem, após estas breves considerações
sobre a gênese e a natureza do crédito
alimentar, faz-se imprescindível a análise
dos fundamentos jurídicos que deram ensejo
ao entendimento jurisprudencial ora combatido.
Com efeito, a aludida orientação
possui sua base de sustentação em
três argumentos fulcrais: I - a urgência
da prestação alimentícia
somente se justifica para o débito presente,
imprescindível à manutenção
do alimentando, sendo presumível a desnecessidade
de cobrança célere das parcelas
mais remotas; II - as prestações
acumuladas perdem a sua natureza de verba alimentar,
transmudando-se em valor indenizatório;
III - a excepcionalidade da prisão civil.
Com supedâneo nestas três premissas,
os tribunais têm proclamado, sistematicamente,
que a execução do débito
alimentar superior a três meses deve, preferencialmente,
ser cindida, aplicando-se o art. 733 do C.P.C.,
com conseqüente possibilidade de prisão
do devedor, para o último trimestre inadimplido,
devendo a persecução das demais
ocorrer através da execução
por quantia certa contra devedor solvente (art.
732 c/c art. 652 do C.P.C), cuja eficácia,
como se sabe, está umbilicalmente relacionada
com a realização de constrição
sobre o patrimônio do alimentante faltoso.
Em que pese a jurisprudência do Tribunal
de Justiça de Santa Catarina ter reconhecido
a possibilidade de concomitância, em um
único processo, das duas formas de execução
(Agrav. Instrum. 9.729, Rel. Des. Éder
Graf, DJSC 9.287, 31.07.95), com a expedição
de dois mandados, um para as últimas três
parcelas devidas (art. 733 do C.P.C.), com justificação,
no tríduo legal, nos autos principais,
e outro (art. 732 do C.P.C.) para pagamento em
24 horas ou indicação de bens à
penhora, com possibilidade de oposição
de embargos em autos apartados e apensados, não
me parece que esta orientação esteja
afinada com a melhor exegese da lei instrumental,
bem como da legislação especial
que regula a matéria e, ainda, com a Carta
Política vigente.
Não se pretende, conforme já se
disse, proclamar uma visão obsoleta e desvinculada
do pensamento jurídico atual, incentivando
o que já não se admite no direito
vigente entre nós, ou seja, a segregação
pessoal decorrente de dívidas de valor.
Ao revés, o que se almeja é a exposição
de uma interpretação do tema e,
em especial das normas legais pertinentes à
espécie, voltada para os fins sociais e
às exigências do bem comum, nos termos
do que preceitua o art. 5º da Lei de Introdução
ao Código Civil.
Nessa linha, para a correta abordagem do tema,
afigura-se imperioso consignar, inicialmente,
quais as formas de execução da prestação
de alimentos, cuja classificação
pode assim ser ordenada: a) desconto em folha
de pagamento, com previsão observada tanto
na Lei de Alimentos (art. 16) como no C.P.C. (art.
734), com eficácia para os casos de alimentantes
empregados, militares, funcionários públicos,
etc... b) desconto de aluguéis ou quaisquer
outras formas de rendimentos do devedor (art.17
da Lei 5.478/68), opção viável
quando devedor for profissional liberal, empresário
ou vinculado ao mercado informal; c) na impossibilidade
de satisfação do crédito
através das duas primeiras formas, poderá
o alimentando optar pela execução
na forma do art.733 do C.P.C., com prisão
do devedor, ou, finalmente, d) escolher a execução
por quantia certa, com penhora de bens.
Faço, aqui, um pequeno parêntese,
tão-somente para registrar que não
se cogita de qualquer dúvida sobre a prevalência
das duas primeiras formas, desconto em folha de
pagamento ou de aluguéis e outros rendimentos,
sobre as últimas duas. Todavia, não
se exaurindo o débito por nenhuma daquelas
possibilidades iniciais, não se pode, como
muitos já sustentaram, impedir a deflagração
da ação executiva, com pedido de
prisão, antes de esgotada a possibilidade
da execução com penhora de bens.
Na verdade, ainda que a execução
deva ser sempre a menos gravosa para o devedor,
neste caso, diante das peculiaridades do crédito
exeqüendo, estimo que não haja qualquer
hierarquia de uma forma sobre a outra. Pelo contrário,
tenho que ao credor compete escolher a forma executiva
mais conveniente aos seus interesses.
Esta discussão, contudo, parece-me superada
tanto na doutrina como na jurisprudência,
podendo o credor ajuizar diretamente a ação
de execução com base no art.733
do C.P.C., muito embora, neste caso, como já
se disse, sua pretensão alcançará
somente o último trimestre devido. E é
justamente contra esta orientação
pretoriana a insurgência ora expendida.
O crédito alimentar é prioritário,
devendo ser executado com presteza. Não
se justifica, neste diapasão, que o devedor
seja o maior beneficiado com o entendimento jurisprudencial
ora enfrentado, forçando o credor a percorrer
um longo, tormentoso e sacrificante caminho para
receber seu crédito de forma integral.
Permito-me exemplificar: suponha-se que o alimentante
esteja em débito com a prestação
alimentícia por um período de seis
meses. Neste caso, ingressando o credor com a
execução, o réu será
citado para pagar, comprovar o pagamento ou justificar
os motivos da inadimplência das últimas
três parcelas, sob pena de prisão.
Da mesma forma, será citado para, em 24
horas, efetuar o pagamento das parcelas anteriores
ao último trimestre, sob pena de penhora.
Pois bem, a partir daí se iniciam os problemas.
É que, diante do acúmulo de serviço
atualmente existente no Judiciário, máxime
nas questões familiares, onde existe uma
invencível carga de trabalho, quando o
devedor for citado, diga-se, na forma do art.
733 do C.P.C - apenas para as últimas três
parcelas - provavelmente tenha transcorrido mais
de um mês. Após, apresentada a justificação,
impõe-se a manifestação da
parte credora e do Ministério Público,
voltando os autos ao juiz para respectiva decisão
interlocutória. Por certo, com muita boa
vontade, neste instante, a segunda parcela, após
o ajuizamento do feito, já tenha vencido.
Teremos, então, três parcelas devidas,
anteriores ao ajuizamento, acrescidas de mais
duas vencidas depois da deflagração
do feito, totalizando cinco prestações.
Ocorre que, rechaçada a justificativa
apresentada e decretada a prisão, o devedor,
mediante o pagamento das últimas três
parcelas e com a comprovação deste
pagamento em sede de habeas-corpus, será
colocado em liberdade, tudo em homenagem ao princípio
de que somente as últimas três prestações
ostentam natureza alimentar e, por isso, reclamam
a necessária urgência.
Ora, prosseguindo no exemplo citado, quando o
feito foi detonado, já não se permitiu
a cobrança de todo o semestre devido através
do art. 733 do C.P.C., cindindo-se a execução.
Posteriormente, por morosidade da própria
máquina judiciária ou por estratagemas
da defesa, mesmo vencendo-se outras parcelas no
curso da ação, com manifesto desprezo
aos ditames do art. 290 do C.P.C., libera-se o
devedor que simplesmente pagar as últimas
três parcelas. Com renovada vênia,
tal entendimento somente se presta para homenagear
a chicana.
É de se indagar: e o que acontecerá
com as outras duas prestações que
se venceram após o trimestre inicialmente
aceito para execução na forma do
art. 733 do C.P.C.? Deverão elas integrar,
juntamente com aquelas outras três parcelas
anteriores, que complementavam o semestre devido,
a execução na forma do art. 732
do C.P.C.
Em resumo: o crédito, no momento da decretação
da prisão já não seria de
seis meses, mas de oito meses. O devedor pagou
três e obrigou o credor a cobrar as outras
cinco mediante a execução com penhora
de bens, o que importará nos seguintes
passos: a) localização do patrimônio
passível de constrição; b)
efetuada a penhora, deverá aguardar o decêndio
legal para oferecimento de embargos; c) oferecidos
os embargos, deverá ser realizada a respectiva
instrução, geralmente com designação
de audiência em pautas assoberbadas; d)
julgados os embargos, segue-se com a avaliação
e, finalmente, depois deste rosário de
formalidades, restará designada hasta pública.
Sucede que, no curso do procedimento para executar
aquelas cinco parcelas, outras já se venceram.
O devedor, sabendo que não será
mantido preso pela totalidade do débito,
somente pagará a dívida, vencida
após aquele primeiro pagamento, se o credor
ingressar com nova execução exigindo
os últimos três meses.
Significa dizer, em outras palavras, que o entendimento
jurisprudencial vigente, além de compelir
o credor a ingressar com uma forma de execução
que não resultará qualquer proveito
(art. 732 do C.P.C.), pois sabe-se que a penhora
em casos deste jaez é quase impossível,
também obrigará o alimentante a
ingressar em juízo a cada trimestre com
uma nova execução, abarrotando ainda
mais o Judiciário.
Como se vê, a atual orientação
pretoriana, que libera o devedor de alimentos
dos rigores da lei mediante o pagamento das últimas
três parcelas, favorece justamente a parte
que deveria ser mais exigida, importando em flagrante
prejuízo para o credor.
Não é demais reprisar que em sede
de hermenêutica jurídica, se duas
interpretações se mostram razoáveis,
deve-se optar pela que melhor atenda aos fins
sociais e ao bem comum (art. 5º da L.I.C.C.).
A lei, segundo o magistério de Carlos Maximiliano,
"não pode ser entendida como uma abstração,
uma ficção criada por juristas,
sob pena de contrariar os mais comezinhos princípios
de justiça e tornar-se desumana."
Por outro lado, observo que a interpretação
jurisprudencial em exame, à luz dos dispositivos
legais que regulam a matéria, também
não se sustenta. É que, nem a Constituição
revogada (art.153, § 17), nem a atual Carta
Magna (art. 5º, LXVII), fixaram um limite
temporal do débito alimentar para a decretação
da medida coercitiva facultada, não sendo
lícito ao interprete distinguir onde a
Lei Maior não distingue.
O ordenamento adjetivo civil, recentemente, passou
por profundas alterações. Nada,
porém, foi modificado na redação
do art. 733, § 1º, do C.P.C., que continua
com o mesmo comando imperativo: "Se o devedor
não pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe-á
a prisão."
Na verdade, a orientação jurisprudencial
que rechaça a cobrança, pelo via
do art. 733 do C.P.C., de alimentos pretéritos
e acumulados, parte do princípio que tal
verba perdeu o seu caráter alimentar, passando
a ostentar conteúdo de natureza indenizatória,
o que não me parece aceitável.
Como bem observa Arakem de Assis, "Os alimentos
pretéritos não deixam de constituir
´alimentos` com o decurso do tempo. Erra
a jurisprudência alinhada, passível
de grande crítica, partindo da inflexível
pressuposição de que o devedor,
em atraso há muito tempo, jamais ostentará
recursos para pagar a dívida de uma só
vez. Exame prudente do meio executório
insculpido no art. 733, principalmente dos efeitos
da defesa do executado, indica que nenhuma das
classes de alimentos, em princípio se exclui
do seu âmbito."
Arnaldo Marmitt, por sua vez, ressalta que "as
parcelas referentes a alimentos pretéritos
traduzem substrato econômico concernente
à manutenção e à subsistência.
Improcede, por falho, o argumento generalizado
de que, se o destinatário não os
recebeu e assim mesmo sobreviveu, não se
tratava de algo necessário e indispensável
que dissesse de perto com sua sobrevivência.
As parcelas vencidas e impagas durante período
um tanto prolongado, e exigidas a posteriori,
nem sempre deixam de exercer função
alimentar, como quer grande parte da doutrina.
As quantias referentes aos débitos atrasados,
só pelo fato do atraso não perdem
o caráter alimentar. Se assim fosse, ninguém
mais estaria obrigado a pensionar ninguém.
O atraso atribuível ao devedor não
despe as parcelas da natureza da causa que emanam.
O débito continua sendo alimentar.".
Finalmente, no mesmo sentido, transcrevo a sempre
abalizada doutrina de Yussef Said Cahali: "Em
realidade, embora aceitemos, por vezes, em razão
das circunstâncias, que as prestações
alimentícias pretéritas (especialmente
quando se trata de diferenças posteriormente
reclamadas), atingindo montantes expressivos,
somente poderia ser reclamadas por via do processo
executivo do art. 732 do C.P.C. (execução
por quantia certa contra devedor solvente), estamos
pessoalmente convencidos que é mais acertado
entender-se, como o STF, que os débitos
atrasados, valor de pensão alimentícia,
não perderam, por força do inadimplemento
de obrigação de prestar alimentos,
o caráter da causa de que provieram. Os
efeitos, quaisquer que sejam, têm o mesmo
caráter ou natureza da causa. No caso,
a dívida continuou sendo de alimentos;
não, de outro caráter ou natureza,
deduzindo-se daí que, tendo tais débitos
pretéritos, sempre, caráter alimentar,
nenhuma ilegalidade há no decreto de prisão
do alimentante , que é a medida constritiva,
legalmente prevista, para que este cumpra sua
obrigação de alimentar."
Como se vê, o débito decorrente
de prestação alimentícia,
ainda que acumulado por algum período,
não perde a sua natureza. Conseguintemente,
não se pode suprimir do credor a possibilidade
de executá-lo por uma das formas previstas
pela lei adjetiva codificada, ainda que coagindo
o devedor com a possibilidade de prisão.
Esta, aliás, a única finalidade
da segregação prevista no texto
legal.
Mas, se não bastassem tais argumentos,
existe um outro aspecto ainda mais relevante,
bem ressalvado pelo Desembargador do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, Sérgio
Gischkow Pereira, em trabalho publicado na Revista
AJURIS, nº 10, pg. 35, ou seja, : "como
tergiversar este absurdo contraste: em simples
caso de depositário infiel se permite prisão
até um ano (art. 902, § 1º, do
C.P.C.), mas se nega a prisão, por prazo
muito inferior, em assunto de importância
irretorquivelmente superior, e muito superior."
É certo que a prisão deve ser sempre
medida excepcional. Todavia, esta excepcionalidade
não pode ter o condão de inviabilizar
um dos instrumentos mais poderosos de coerção
aplicado em desfavor de pais irresponsáveis,
devedores remissos em cumprir com um dever fundamental,
cuja infringência importa até mesmo
em ilícito penal - art. 244 do Código
Penal.
A experiência nos tem demonstrado que a
ameaça de prisão, na maioria dos
casos, é suficiente para que o pagamento
seja efetuado ou, ao menos, possibilita a solução
do litígio mediante acordo para adimplemento
do valor devido em breves parcelas.
Sabe-se, e isto é uma realidade para toda
a magistratura, sem qualquer exceção,
que o devedor, mesmo aquele mais recalcitrante,
quando segregado, imediatamente providencia o
pagamento. Se não quita o débito,
pelo menos grande parte da dívida geralmente
é resgatada, competindo ao Juiz, então,
analisar a viabilidade da concessão de
um pequeno parcelamento, que não desnatura
o débito para dívida de valor, podendo
a prisão ser revigorada caso não
cumprido o ajuste.
Diante destas considerações, estimo
que a fixação de um período
certo para arrimar o decreto prisional, ou seja,
três parcelas de pensão em atraso,
seja de duvidosa juridicidade e, além de
não possuir amparo legal, causa enorme
prejuízo para quem mais necessita da proteção
jurisdicional, ou seja, o alimentando.
É de se indagar novamente: e se forem
quatro, cinco ou sete meses de atraso, seria necessário
cindir a execução? De acordo com
o entendimento multicitado sim. Todavia, penso
que esta matéria deva ser examinada por
ocasião da justificação prevista
pelo art. 733 do C.P.C, ocasião em que
o devedor poderá apresentar ao juiz todos
os motivos que implicaram no seu inadimplemento.
Faço, aqui, um novo parêntese, desta
feita para observar que entre a peça de
justificação (art. 733) e os embargos
à execução, salvante a redução
do prazo para entrega do respectivo arrazoado,
de dez para três dias, nenhum outro prejuízo
ocorre para o devedor, que poderá tanto
numa como noutra forma apresentar toda a matéria
de defesa que entender pertinente. E mais: nada
impede que o juiz, a exemplo do que ocorre nos
embargos, designe, após oferecida e repostada
a peça de justificação, audiência
de conciliação ou mesmo para coleta
das provas requeridas pelo réu.
O credor, porém, compelido a cobrar seu
crédito alimentar através da execução
por quantia certa contra devedor solvente, sofre,
desenganadamente, prejuízos infinitamente
maiores, cuja seqüência de atos, desde
a realização da constrição
até a hasta pública, já foi
referida anteriormente.
Ora, se o devedor, mesmo executado na forma prevista
pelo art. 733 do CPC, poderá alegar toda
e qualquer a matéria defesa para justificar
seu inadimplemento, inclusive com requerimento
para produção de provas em audiência,
não vejo fundamento compreensível
para obrigar o credor, justamente o mais necessitado,
a perseguir seu crédito por outra forma
de execução, repita-se, cujos prejuízos
em seu desfavor serão muito maiores do
que para o devedor, que apenas será beneficiado
com a burocracia do procedimento.
Será, pois, sopesando a peça de
justificação e respectiva réplica
do alimentante que o Juiz poderá extrair
a exata medida da situação vivenciada
pelas partes. Examinará o magistrado, nesta
oportunidade, não só os motivos
da inadimplência (insolvência do réu,
doença, desemprego, nascimento de outros
filhos etc...), mas também as causas que
importaram na demora para o ingresso do pedido,
dentre elas a falta de localização
do alimentante, o desconhecimento do seu local
de trabalho, o temor reverencial, ameaças,
promessas de adimplemento, falta de advogado que
se disponha a patrocinar a causa, muitas vezes
de baixíssimo valor, enfim, uma infinidade
de fatos ou motivos.
Somente depois desta percuciente análise
é que se poderá cogitar da urgência
ou não do pedido, se a prisão coercitiva
se mostra necessária ou não, pois
é inocultável que os alimentandos,
mesmo que o débito seja superior a três
meses, de alguma forma, ainda que miseravelmente,
sobreviveram e continuarão sobrevivendo.
Isto, contudo, não é argumento para
favorecer o devedor, que deveria, antes de mais
nada, observar a regularidade do seu compromisso.
Não se pode, pois, decidir todo e qualquer
processo de execução de alimentos
com base na jurisprudência multicitada,
o que representa, a meu sentir, um casuísmo
reprovável. O que se apregoa é o
exame particularizado de cada situação
posta em juízo, consoante, aliás,
chegou a ser referido pela Terceira Câmara
Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de Santa Catarina, por ocasião do
julgamento do Habeas Corpus nº 96.008733-8,
da Comarca de Içara, tendo como Relator
o eminente Desembargador Paulo Galloti: "nem
sempre o pagamento das três últimas
prestações do débito alimentar
livra o devedor da pena de prisão prevista
pelo art. 733 do CPC, tornando-se necessário,
no exame de cada situação concreta,
verificar as razões da inadimplência."
E não só da inadimplência
do devedor, mas também das causas que importaram
no retardamento da respectiva cobrança.
Para ilustrar a exposição até
aqui expendida, formulo apenas uma das várias
hipóteses diuturnamente enfrentadas nas
Varas de Família: suponha-se que o credor
ingressou com uma execução para
cobrança de onze meses de prestações
em atraso, consignando na inicial que a ação
não restou aforada anteriormente em razão
do desconhecimento do paradeiro do réu.
A citação, de fato, ocorre por precatória,
diga-se, em local distante do domicílio
do alimentando. Na peça de justificação,
o devedor em momento algum alega ser do conhecimento
do credor o seu novo endereço, o que poderia
ser comprovado, se o caso, através de cartas
recebidas do alimentando ou mesmo através
de visitas deste último presenciadas por
testemunhas.
Pergunta-se: se o autor desconhecia o endereço
do réu, qual seria a utilidade do aforamento
da ação dentro do primeiro trimestre
de inadimplência? Certamente nenhuma, servindo
apenas para inchar o mapa estatístico dos
juízes, obrigando os serventuários
a cumprir medidas inúteis para, depois,
receber um despacho determinando o arquivamento
administrativo do feito.
Em abreviada síntese: considerando a relevância
do crédito por alimentos e a necessidade
de uma execução mais célere,
supedaneado pelo art. 5º da Lei de Introdução
ao Código Civil, reputo inviável
o tarifamento de um período certo de inadimplência
(três parcelas) como espécie de condição
de admissibilidade da execução na
forma do art. 733 do C.P.C. Ao credor deve ser
facultada qual a forma de execução
que melhor atenda os seus interesses, competindo
ao juiz, uma vez escolhida a execução
com pedido de prisão, dar a correta dição
do direito após perlustrar com profundidade
a justificação apresentada e os
demais elementos de convicção carreados
aos autos. Cindir a execução previamente,
obrigando o credor a ingressar com uma modalidade
executiva cujo resultado antecipadamente já
se conhece, serve apenas para tumultuar a persecução
do crédito, beneficiar o devedor, fomentar
o inadimplemento e forçar o ingresso de
execuções idênticas a cada
trimestre, abarrotando ainda mais um Judiciário
que já tangencia, diante do volume de trabalho,
os limites da ineficiência.
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Marmitt, Arnaldo - Prisão Civil por Alimentos
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1989, pg. 10).
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de Alimentos e Prisão do Devedor, 2ª
ed., RT, São Paulo, 1994, pgs. 112/113).
Maximiliano, Carlos - Hermenêutica Jurídica
e Aplicação do Direito, 2ª
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