Luis Alberto Warat
Cidadania e Direitos Humanos são expressões que vêm
cruzando tanto seus sentidos que terminaram por unificar-se
bastante, são termos cada dia mais sinônimos.
Em suas origens os Direitos Humanos tiveram sua significação
marcada a fogo pelo jusnaturalismo. Para escapar das
marcas da dor e da morte o sentido dos Direitos Humanos
tomou o rumo do transcendente ou da invocação a natureza.
Os Direitos Humanos garantidos pelo divino, o sagrado
ou o natural como atributos inatos na constituição da
personalidade. As pessoas teriam que ser reconhecidas
como tais a medida que teriam un conjunto de Direitos
inerentes que constituiam sua humanidade, daí o neologismo
Direitos Humanos. Logo, com o advento do normativismo
os direitos humanos receberam o nome de Direitos Fundamentais,
adquirindo o estatuto de garantias constitucionais superiores.
Assim para muitos autores os direitos fundamentais adquiriam
uma hierarquia de nível superior as garantias constitucionais.
Entrando em choque prevaleceriam os direitos fundamentais
sobre as garantias. Princípio estabelecido, por exemplo,
na doutrina espanhola e na corrente doutrinária que
recebe o nome de garantismo.
Os cientistas políticos por sua vez terminam afirmando
os direitos humanos como dimensões simbólicas da política.
Estamos falando no interior das concepções jurídico-políticas
da modernidade. Agora na alvorada do século XXI começa
a emergir um novo paradigma jurídico-cultural que coloca-se
diante das questões de direitos humanos com outros olhos.
O paradigma jurídico da modernidade dissociou as idéias
de direitos humanos e de cidadania para assegurar suas
crenças em torno do funcionamento democrático de uma
sociedade. Acreditou-se que a única forma de poder desenvolver
uma identidade cívica compartida era a de ter um estatuto
de cidadania comum diferenciado e alheio a qualquer
concepção de conflito. Assim como acreditou-se numa
concepção dos direitos humanos reduzido ao exercício
normativo dos direitos subjetivos. A cidadania e os
direitos humanos expressados numa linguagem de estabilidade
que negava qualquer vínculo com o conflito.
No panorama jurídico que sustenta a concepção moderna
da democracia a noção de cidadania esteve restrita a
uma idéia de participação na coisa pública. Participo,
logo existo como cidadão. Esse mesmo panorama foi fechando
a idéia dos Direitos Humanos em torno ao relacionamento
dos indivíduos com o Estado. Ele era convertido no grande
violentador dos direitos fundamentais das pessoas. Uma
forma de impor ideologicamente limites ao monopólio
Estatal da coerção. Idéia bastante acertada na medida
em que decide os conflitos alheios por terceiros que
detêm o monopólio estatal da coerção, uma espécie de
atentado aos direitos humanos e um perigo constante
a reinserção dos totalitarismos, que como idéia regeitam
os regimes auto-afirmados como democráticos.
O certo é que começou-se a sentir falta de outras concepções
da cidadania e dos direitos fundamentais do homem. No
limiar do século XXI os desafios que as democracias
devem enfrentar vêm mudando muito com referência às
décadas passadas. Existe agora um exercício mediático
da democracia, que manipula os sentimentos das pessoas,
impondo o que é bom ou ruim para elas sentirem. A afetividade
degradada e o indivíduo alienado, impedido de poder
participar realmente nos processos decisórios. As decisões
unicamente existem na mídia, logo, o conceito tradicional
de cidadania como participação cai por terra.
É previsível que nos próximos vinte anos se comece
a perceber uma disperção enorme do poder. O Estado vai
desagregando seu poder no corpo social. Uma profunda
disperção do poder social e político na sociedade civil.
Esta situação obrigará a uma redefinição dos princípios
democráticos, exigidos de produzir uma humanização do
direito em moldes não tradicionais, como a mediação
e a negociação transformadora.
A democracia e o direito moderno ficaram presos nas
redes das formas. Agora começa a surgir a necessidade
de mudanças substantivas nos conteúdos. Começa a procurar-se
princípios de democracia, de política e de direito baseados
nas relações interpessoais e seus conflitos. A cidadania,
a democracia e o direito como mediação. Cidadãos que
decidam sua vida em todas as esferas do social e que
não somente participem simulando decidir na emissão
de um voto. Cidadãos que contem e não sejam contados
na hora de um comício. Para que um cidadão conte é preciso
que tenha a possibilidade de compartilhar o conhecimento
e de desfrutar de uma informação que possa ajudá-lo
a eleger livremente entre as opções que se lhe oferecem.
Para que um cidadão possa contar é preciso que se lhe
permita realizar sua imersão em processo de mediação.
Nisto radica a democracia e a justiça cidadã.
Todos os grandes problemas do tempo que está por vir,
desde o deterioro ambiental a violência urbana, passando
pelas incapacidades de relacionarmos com autonomia e
as variadas formas de adição ou de exploração demográfica
se manifestam municipalmente, de modo local e não global
ou estatal e sua solução exige iniciativas nesses contextos,
iniciativas municipais, lugares municipais para o exercício
da justiça, da cidadania e da democracia radical dos
direitos humanos. Daí a proposta do Tribunal de Santa
Catarina no sentido da implementação dos juizados de
cidadania a cargo de juízes cidadãos.
Nessas horas em que a sociedade ameaça com retornar
a barbárie, precisamos de formas mais eficazes de administração
da justiça, que garantam a todos o direito a ter o direito
de decidir seus conflitos por si mesmos, de forma cidadã.
A resposta - a única resposta - consiste em reforçar
as práticas da mediação com juízes cidadãos que ajudem
as pessoas a produzir, por elas mesmas uma diferença
- com o outro - de seus conflitos. Uma forma de fazer
cotidianas as possibilidades de decidir por nós mesmos
as prioridades de nossas vidas em relação a nossos relacionamentos.
O direito não só de sentir senão de poder expressar
ao outro os sentimentos, algo que a burocracia que envolve
o exercício tradicional da administração da justiça
não permite. Num litígio a voz é silenciada, convertida
em petição assinada por um advogado. Uma reivindicação
dos desejos sem voz que termina ameaçando com violência
a condição de cidadão. Uma das coisas que ameaçam o
futuro da democracia e o paradoxo que em plena revolução
das comunicações, continue crescendo o número de silenciados
pelas instituições que deveriam dar-lhe voz (e que unicamente
lhe outorgam o direito ao voto).
Estamos globalizando em todas as instituições, incluindo
na administração da justiça um sentimento que faz com
que o cidadão se sinta perdido no anonimato, espectador
passivo (ainda de seus próprios conflitos) isolado do
outro, ambos condenados a irrelevância e a irrealidade,
imersos num perverso espaço virtual. Estamos na democracia
dos silenciados e no exercicio de uma cidadania do silêncio.
É certo que se não participo não existo como cidadão,
porém o mais importante é participar nos relacionamentos
com o outro, poder mediar as próprias relações pessoais,
como condição de poder logo, participar em decisões
comunitárias, participativas na coisa pública. Se não
consigo participar no encontro comigo mesmo, participar
num processo de afirmação ou de recuperação de minha
auto-estima nunca conseguirei participar afirmando minha
autonomia na coisa pública. Exercer a cidadania não
é só participar, exige um modo muito particular e fundamental
de participação: a participação desde a autonomia. Em
caso contrário, estou simulando a participação, como
agora acontece nas sociedades finiseculares. Se eu não
conto e não contam comigo de que exercício de cidadania
estamos falando? Participo com autonomia, logo existo
deve ser a fórmula da cidadania. A nota que pode definir
o sentido da liberdade é a possibilidade de forjar meu
próprio destino. Sem essa liberdade não existe cidadania.
Ser cidadão é recuperar a própria voz.
A tarefa de dar voz a cidadania, principalmente com
relação a seus próprios conflitos é algo a que se propôs
o Tribunal de Santa Catarina com o programa de implementação
dos juizados de cidadania. Juizados onde os indivíduos
poderão sair do silêncio, recuperar sua voz.
O direito da Modernidade nos fez acreditar que os juristas
possuíam fórmulas mágicas para realizar o direito na
sociedade. Como se fosse possível fazer de conta que
não existem conflitos existenciais concretos que transbordam
permanentemente a magia sonhada. Uma magia que em lugar
de ensinar-nos que a riqueza estava na imprevisibilidade,
na diversidade, fez-nos acreditar na magia da uniformidade,
do já dito desde sempre.
Outros ventos sopram, e começam a trazer uma idéia
de direitos humanos e de cidadania centrada numa concepção
conflitiva das relações humanas. Direitos humanos e
cidadania fora da temática normativa, dentro do conflito
como um modo de relacionamento com o outro. Os direitos
humanos como a possibilidade de reencontrar-me comigo
mesmo, de recuperar minha auto-estima afetada por um
eu alienado pela cultura.
Nesse ponto direitos humanos e cidadania começam a
transitar a mesma trilha significativa. A cidadania
como o modo transmoderno de realizar os direitos humanos.
Os direitos humanos como sentido, como espaço simbólico
e a cidadania como a experiência de vida que os realiza.
Os direitos humanos como paradigma de vida e a cidadania
como experiências concretas de relacionamento com o
outro produzindo diferenças em nossos conflitos. Ambos
termos conjugados como a possibilidade das pessoas de
reivindicar a sua necessidade de ser elas mesmas as
que determinam suas prioridades de vida e suas prioridades
nos relacionamentos. O direito de poder decidir por
si mesmo seus sentimentos. O direito de sentir por si
mesmo, sem que os outros determinem o que é bom ou ruim
de sentir. A cidadania como a possibilidade de construir
sozinho o amor por mim, o direito a poder decidir os
modos de querer-me, de aprender a amar-me.
A cidadania e meu direito a amar-me, que em conjunção
irão determinando minhas possibilidades de realização
da autonomia.
A cidadania e meu direito a amar-me se juntam para
estruturar outra concepção do direito e da justiça.
Um direito não centrado nas normas mas sim na cidadania,
uma justiça não centrada em valores mas sim na cidadania.
O direito da cidadania e a justiça cidadã. Duas idéias
novas que surgem no pensamento jurídico transmoderno
como formas de humanização do direito e da Justiça e
modos de afastamento de uma concepção normativa do direito,
que burocratizou o estabelecimento dos litígios e desumanizou
a seus operadores.
Diante do panorama de novas crenças no imaginário do
direito o Tribunal de Justiça de Santa Catarina está
começando a implementar, em todos os municípios do Estado
um programa de Direito e de Justiça cidadã que acredito
profundamente inovador, um acontecimento histórico na
administração da Justiça Catarinense.
O Tribunal, através da implementação dos juizados de
cidadania em todos os municípios catarinenses, busca
encontrar mecanismos de harmonização dos direitos diferenciados,
atualizando-se, assim ao pensamento transmoderno; a
cidadania como modo de realização dos direitos humanos
com autonomia. O cidadão saindo da passividade para
o exercício efetivo de uma democracia com bases humanas. |