Juizados Especiais Criminais - A
Revolução Copérnica do Sistema
Penal Vigente
Mario Antonio Lobato de Paiva (*)
A prisão é um encerramento
que mata o prisioneiro para a vida e o mundo real: não
se trata mais de torturas sangrentas do fogo do inferno,
é a separação, a privação
da visão de Deus, pela privação
do contato social normal, a prisão , semimorte
social, deve ser posta em causa, indenizações,
ou trabalhos ao serviço da comunidade parecem
ser produtivos, muito menos ou nulamente criminógenos,
e também mais adequados às funções
reconstitutivas da pena.
Mario Antonio Lobato de Paiva
Nos últimos trinta anos,
o Brasil experimentou um grande desenvolvimento econômico
e sua população dobrou, vivendo, hoje,
perto de 80% nas grandes cidades. A par disso, a qualidade
de vida, no tocante à segurança pública,
piorou sensivelmente, com índices alarmantes
de criminalidade. Ao longo desse tempo, Polícia,
Judiciário, Ministério Público
e o sistema de execução de penas não
foram dotados de recursos materiais e de pessoal à
altura da demanda pelos seus serviços. Nem tampouco
a organização, sob o plano institucional,
modernizou-se como os cidadãos almejam, e, em
conseqüência, acentuou-se cada vez mais a
insatisfação da sociedade em relação
à Justiça, considerada como um todo.
A invocação mais
costumeira e permanente é a impunidade. Reclama-se
que a polícia não previne o crime e não
investiga adequadamente; que os processos se eternizam
no Judiciário; que os criminosos não são
presos, processados e condenados, o sistema não
os recupera ou os ressocializa, mas, pelo contrário,
torna-os mais aptos.
Sob o ponto de vista legal,
o Judiciário parece cada vez mais sobrecarregado.
Processos e procedimentos continuam lentos, com uma
possibilidade recursal extremamente generosa. O número
de processos, nesse rumo, é assustador, sendo
difícil antever o fim. A quantidade de leis e
sua mudança incessante criam um verdadeiro caos
na inteligibilidade do que é crime ou mero ato
ilícito não penal.
Dentro dessa realidade, o imaginário
jurídico-legal está refinando-se. Ao mesmo
tempo que se criam leis, aumentando as penas, com novos
tipos de crimes e regras processuais supressoras de
garantias constitucionais, também, por outro
lado, instituem-se instrumentos despenalizadores, com
forte tendência liberalizante, uma vez que a experiência
demonstrou que a imposição da pena privativa
de liberdade como solução para todos os
conflitos sociais não reduziu os índices
de criminalidade, como teoricamente sustentado, mas
aumentou a crença popular na impunidade.
Restava pôr em prática
a idéia de que ao Direito Penal é reservada
uma função fragmentária, mínima
e subsidiária na tarefa de tutela social. Porque
lhe é conferida a proteção de alguns,
apenas dos bens e interesses sociais, os reputados mais
relevantes pela comunidade, deve o Direito Penal ser
invocado a intervir somente, quando se mostrarem insuficientes,
ou ineficazes, os demais ramos do ordenamento jurídico.
No segmento desta linha de
pensamento, não compete ao Estado perseguir penalmente
toda e qualquer infração social. Face
a estrutura do ordenamento jurídico em vigor,
sustentava-se que ao Estado se impunha mitigar o princípio
da obrigatoriedade da ação penal pública,
substituir, em alguns casos, o princípio da verdade
real pelo da verdade consensual, bem como introduzir
novas medidas alternativas à tradicional pena
privativa de liberdade, destacando-se esta como último
recurso posto à disposição do Estado
para proteção de seus súditos.
Com a edição
da lei nº 9099/95 e a conseqüente vigência
entre nós de seus modernos institutos, inúmeras
são as situações novas a serem
enfrentadas no cotidiano forense. Para dirimir estas
questões, devemos sempre ter por norte o espírito
primordial do legislador , que foi o de imprimir a celeridade,
a oralidade e, até, a informalidade na condução
dos feitos por ela regidos. Em resumo, temos que ser
criativos, eis que este avançadíssimo
estatuto convive com o Código Penal e de Processo
Penal- apesar das reiteradas modificações-
bastante antigos.
Os Juizados Especiais seguem
um idéia reformista do modo de atuação
do Poder Judiciário, ou melhor, de fazer-se justiça
com o Judiciário, constituindo-se o centro das
atenções com vistas à eficácia
e celeridade processual, mediante o emprego da oralidade,
simplicidade e economia, nas questões cíveis
de menor complexidade e nas infrações
penais de menor potencial ofensivo. Os Juizados Especiais
têm inspiração na Common law
e eram defendidas, há muito, pela doutrina patrícia,
sendo objeto de normatização na seara
do direito infraconstitucional, mediante a edição
da Lei n.º 7.244, de 07 de novembro de 1984 criando-se
o Juizado Especial de Pequenas Causas Cíveis,
que foi instalado em diversas comarcas, muito embora,
encontrasse resistência de advogados e, até,
mesmo, de juízes.
Por força do mandamento
constitucional (Constituição Federal ,
artigo 98, I ), o legislador ordinário instituiu
no cenário jurídico nacional, a Lei n.º
9.099 de 27/09/95, pela qual se deu margem a uma verdadeira
mudança na mentalidade punitiva clássica.
Isto porque, criando institutos de natureza marcantemente
despenalizadora - composição civil, transação
penal e suspensão - investiu contra a couraça
da concepção clássica tradicional
apoiada, exclusivamente, na aplicação
da pena como instrumento para a efetivação
do direito, tendo a prisão como um dos seus alicerces
fundamentais, rompendo-a e apontando as vantagens jurídicas
da nova concepção.
Aí é que os reacionários
do Direito Penal não se conformaram. Onde se
viu! Barganhar com bandido! Receber alimentos, remédios,
cadeira de rodas, etc., de criminoso! Isso é
um absurdo. Bandido tem que ir para a cadeia. Esqueciam
estes e aliás, muitos deles ainda não
se deram conta de que os autores de infrações
pequenas, mesmo na sistemática anterior, não
iam para a cadeia. A maioria dos delinqüentes desta
categoria, como se diz no jargão popular, é
absolvido com "sursis". Ou seja, a
punição se exauria no faz de conta. A
polícia finge que apura as infrações.
O Ministério Público finge que processa
o infrator. O juiz finge que pune. O delinqüente
finge que cumpre a pena. A sociedade, que aliás
paga caro por isto tudo, finge que acredita.
Há que se considerar
que como qualquer novo instituto está sujeito
a críticas dentre elas posições
negativas como as que afirmam que a Lei nº 9099/95 é
uma aberração jurídica, dado que
seu cumprimento fere a honorabilidade do cidadão,
fere a sua cidadania e o Estado nega a sua prestação
jurisdicional ao cidadão com o esdrúxulo
pretexto de "desafogar" as prateleiras dos
Cartórios Criminais de grande parte dos processos,
são cometidas as maiores injustiças, fruto
da neociência dos indiciados em matéria
criminal e da falta de vontade dos defensores para prepararem
uma ampla defesa ( artigo 5º, LV da Constituição
Federal) ela aplica uma pena por crime que o cidadão
não só cometeu, como condená-lo
sem dar a ele o direito de ampla defesa ( assegurada
na Constituição Federal, artigo 5º, da
LV), para comodidade e ociosidade dos operários
do Direito ( juízes, promotores e advogados),
como se provará adiante. Sendo uma lei enganosa
na sua aplicação e tendo como protagonistas
dessa situação vexatória para a
imagem da Justiça os juízes, promotores
e advogados.
Asseveram, ainda, os críticos
que os lidadores do direito não devem esquecer
que a administração da justiça
é algo mais do que uma análise dos custos
benefícios; é absolutamente injustificável
buscar legitimar as práticas de disponibilidade
do objeto do processo pena, principalmente estadunidense,
ao simples fundamento de que os prejuízos que
se podem produzir são enormes. Todos os cidadãos
possuem o direito a justiça e é dever
do Estado proporcionar um sistema que possa efetivamente
prestar justiça para todos , não só
para uma minoria; nenhum benefício aparente pode
preponderar sobre a necessidade de preservar o sistema
de justiça criminal.
Incorre-se em erro ao tentar
aplicar á administração da justiça
os princípios e valores da sociedade capitalista:
a produtividade , entendida como a maior ou menor percentual
de condenações obtidas, convertendo-se
num instrumento de medida da eficácia da atividade
jurisdicional nos ordenamentos jurídicos de nosso
tempo.
Num ponto, conquanto as diferenças
de enfoques, todos são concordes, as penas privativas
de liberdade, ao contrário do que se imaginou,
não trouxeram e não trarão os resultados
desejados quer na contenção das condutas
delituosas, quer na ressocialização ou
recuperação dos delinqüentes e não
bastasse, o custo da sua execução é
altíssima para o erário, eis que, consoante
as estatísticas divulgadas, o preso no Brasil
tem um custo médio mensal de três salários
mínimos e meio. Daí, a necessidade de
se buscar novas alternativas às penas privativas
de liberdade.
No direito comparado, poderemos
observar uma série de institutos de grande semelhança
ao nossos Juizados, como podemos observar nos Estados
Unidos da América as "plea guilty"
e "plea bargaining". Essa figuras do
"plea bargaining" e "plea guilty"
suscitam uma controvérsia entre os juristas e
os criminólogos americanos Os críticos
apontam insistentemente para a desigualdade e a injustiça
que se refletem na "plea negotiation"
e que esta , por sua vez, potencia e amplia. Como negociação
de fatos ( e do direito) feitas no gabinete do Ministério
Público ou nos corredores do Tribunal, subtraída
da publicidade. Quanto ao alcance prático do
"plea barganing" nos Estados Unidos,
observam-se que através dele são solucionados
de 80% a 95% de todos os crimes, por outro lado, inquéritos
feitos por uma amostragem significativa de promotores
revelaram que estes consideram cerca de 85% dos casos
da sua experiência como adequados a uma solução
de "plea barganing".
As vantagens das negociações
e das declarações de culpabilidade reside
no fato de serem uma forma de administrar a justiça
de forma muito mais flexível do que o modelo
tradicional. Como se assinala no caso Bordenkircher
v. Hayes, "seja como for a situação
em um mundo ideal, o fato é que a guilty plea
e a plea bargain são componentes importantes
do sistema judicial deste país. Properly administered,
they can beneficit all concerned". Entre essas
"mutuality advantages", que sem dúvida
alguma, são a base para que mais de três
quartos das condenações nos Estados Unidos
da América sejam produto das "pleas"
e as quais são necessárias para que hoje,
em dia, a administração funcione.
Podemos ainda observar no Direito
Comparado o caso da Alemanha que prevê, no parágrafo
153 da Lei Processual Penal, a abstenção
da persecução penal por delitos menores,
as denominadas bagatelas. Em Portugal, o artigo 281
do Código de Processo Penal regula a suspensão
provisória do processo. A Itália, o artigo
444 do novo Código de Processo Penal, criando
um procedimento alternativo ordinário. Na Espanha
depois da reforma de 1988 estabeleceu um procedimento
abreviado para determinados delitos.
Toda a obra humana visa a um
ideal, mais alto ou mais humilde, mais real ou mais
quimérico, porém sempre um ideal. Não
faz exceção o trabalho do legislador,
pois ele procura imprimir no mundo social a mesma ordem
que reina no universo e isso se consegue com a imposição
da lei moral e da lei jurídica, a primeira ilumina
e orienta as consciências, mas nem sempre com
bom êxito
Verifica-se a necessidade de
mudança da mentalidade de todos os aplicadores
do direito, no que concerne ao campo penal e processual
penal, com relação aos delitos de menor
potencial ofensivo. Trouxe a Lei Federal n.º 9099/95,
o marco de um novo tempo, o fim de uma era, que já
agonizava há décadas. Todavia, infelizmente
, no dia-a-dia, as resistências, para sua verdadeira
implementação serão muitas. Os
velhos Institutos temerão, pois ainda se ouvirá
dos conceitos tradicionais travões capazes de
neutralizar esta importante revolução.
Mas o aplicador da norma tem, com essa lei, uma, responsabilidade
histórico-jurídico-social gigantesca.
Acima disso, uma responsabilidade ética.
Acomodar-se à simplicidade
de transpor, mecanicamente, os padrões legais
até hoje vigentes para os novos casos, será
sem dúvida o sepultamento prematuro da possibilidade
de mudança. O desafio está aí,
agora é a vez da sociedade, representada pelos
operadores do direito vencer.
Os Juizados Especiais Criminas
continuam a fecundar controvérsias na ordem jurídica
e pungir o hermeneuta. Não fosse bastante os
institutos do acordo civil, de transação
penal e o sursis processual, que já se
constituíam notáveis singularidades em
sede de direito criminal brasileiro, agora, se fomentam
incipientes embates quanto ao alcance e competência
dos Juizados Especiais Criminais. Diante desta novel
moldura jurídica, o mister do intérprete
é proeminente para a captação e
o enfrentamento destas questões iuris,
na busca continua à plena realização
material do direito, com assaz entrega do bem da vida.
Trata-se de uma MUDANÇA
DE RUMOS com a criação de novos institutos
valorados através de mecanismos de integração
na busca da eficiência com segurança. É
preciso evitar que a interpretação venha
conferir aos novos institutos os contornos dos antigos.
Agora parece que a vítima
começou a importar. Com o advento do novo
estatuto dos crimes de menor potencial ofensivo, o lesado
passou, de mero referencial do episódio "sub
judice", a ser sujeito de direitos, numa relação
triangular com a parte contrária e o julgador.
Atualmente, ele discute em plena audiência, diretamente
com o indigitado infrator a indenização
que lhe é devida pelos danos sofridos. Se por
um lado, não há mais cárcere, hoje
somente reservados a criminosos perigosos, o fato é
que também não existem mais os prêmios."
Enfim, criou-se uma alternativa
adequada aos ilícitos de bagatela , de modo a
permitir, a um só tempo, que seja plenamente
satisfeita a justiça sonhada pelo ofendido e
que seja eliminada a sensação de impunidade
do ofensor. Tudo isso realizado no âmbito de um
procedimento que, antes de fomentar conflitos de interesses
e tendencionar a punição como norte fundamental,
persegue um novo objetivo: a conciliação
entre as partes
O sistema antigo faliu, desmoronou,
essa é que é a verdade. Não há
mais espaço para a persecução penal
inerte, viciada e inócua. A Lei nº 9099/95 sintetiza
e preconiza uma nova ordem: celeridade, modernidade,
eficácia. Um poder judiciário convenientemente
estruturado, com suficiente número de Juizados
Especiais em funcionamento, atuando em tempo integral,
inclusive a noite, de forma desburocratizada, descomplicada,
acessível a todas as ocorrências que lhe
sejam oportunamente encaminhadas.
A lei nº 9099/95 precisa urgentemente
ser compreendida em sua inteireza. Necessita, principalmente,
de vontade política dos governantes, dos administradores,
da atenção dos juristas e dos lidadores
do direito, a fim de que não a transformem numa
cartilha inútil, como tantas outras, divorciada
da realidade prática, vítima de uma postura
reacionária.
É ingênuo pensar
que uma sociedade como a nossa, marcada por tamanhas
diferenças sociais, pelo desemprego e pela miséria,
consiga viver em paz, pois é o estado de guerra,
que hoje, cada cidadão enfrenta e que só
poderá ser resolvido quando tomarmos consciência
de que é injusto e irresponsável tão
somente esperar soluções. É preciso,
urgentemente o esforço de todos para a mudança.
A lei nº 9099/95 é uma
esperança que dentre outras deverá lograr
sucesso para o bem da sociedade trazendo uma justiça
mais acessível, digna e mais perto de quem precisa:
o povo.
(*) Mário Antônio Lobato de Paiva é
advogado-titular do escritório Paiva Advocacia; Professor
da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará;
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional;
Membro da Union Internationale des Avocats sediado en
París, Francia; integrante de la Red Mexicana de Investigadores
del Mercado Laboral; colaborador da Revista do Instituto
Goiano de Direito do Trabalho; Revista Forense; do Instituto
de Ciências Jurídicas do Sudeste Goiano e Revista de
Jurisprudência Trabalhista "Justiça do Trabalho"; Colaborador
da Revista Síntese Trabalhista; Colaborador do Boletim
Latino-americano da Concorrência; Autor de diversos
artigos e dos livros "A Lei dos Juizados Especiais Criminais"
editora forense, 1999 e "A Supremacia do advogado em
face do jus postulandi", editora LED, 2000.
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