Jorge Henrique Schaefer Martins*
Desde a vigência da Lei 9.714/98, que introduziu
novas modalidades de penas substitutivas, além
de alargar a possibilidade de suas incidências,
estabeleceu-se a discórdia atinente à
perspectiva de aplicação das novas
previsões legais, ao crime de tráfico
ilícito de entorpecentes, previsto no art.
12, da Lei 6.368/76.
A doutrina contempla posicionamentos favoráveis
(1), fundados principalmente na inexistência
de disposição expressa a obstaculizá-las,
assim como na possibilidade do estudo casuístico,
quando então, se assim o considerar o juiz,
poderá ser negada a benesse, mormente pela
eventual existência de reincidência,
genérica ou específica, ou mesmo
por força das circunstâncias previstas
no inciso III, do art. 44, do Código Penal. Há, igualmente, manifestações
de contrariedade (2).
O que releva considerar, é que ambos os
entendimentos estão escorados em exegeses
possíveis à luz das disposições
legais vigentes, e somente após a manifestação
dos Tribunais Superiores restará pacificada
a matéria.
Diante de tal conflito, é possível
o posicionamento no sentido de interpretar as
normas de maneira restritiva.
A novel legislação limitou-se a
alterar normas de direito penal de caráter
geral, ou seja, alterou dispositivos do Código
Penal, (artigos 43, 44, 45, 46, 47, 55 e 77),
dispondo acerca das penas restritivas de direitos
e pecuniária substitutiva, aumentando o
rol e o tempo de condenação que
as possibilitariam, além de dispor, também
sobre a extensão da perspectiva de concessão
do sursis.
Em uma análise simplista, poder-se-ia
concluir que a Lei 6.368/76, em sua totalidade,
estaria atingida pelas novas regras, caso as condenações
pelos crimes nela previstos, não atingissem
patamar superior a 4 (quatro) anos, vez que não
cometidos com violência ou grave ameaça
à pessoa.
Esta é uma meia verdade, posto ser possível
a admissão do instituto das penas substitutivas
para os crimes instituídos por referido
diploma, sendo possível excepcionar-se
o tráfico ilícito de entorpecentes,
por alguns motivos.
Estão eles consubstanciados na circunstância
da Lei 9.714 ter disposto sobre artigos inseridos
no Código Penal, não havendo a menção
a outros diplomas legais, competindo ao intérprete
verificar sua incidência. Deve-se, portanto,
atentar para a circunstância da Lei 6.368/76
sofrer a direta incidência dos termos da
Lei 8.072/90, que considerou o tráfico
ilícito de entorpecentes como crime
equiparado aos hediondos (art. 2º).
Existem, portanto, regras especiais atinentes
ao referido ilícito penal, dentre as quais
sobressaem a impossibilidade de extinção
da punibilidade por anistia, graça ou indulto
(art. 2º, inciso I), inviabilidade de responder
ao processo em liberdade, por vedar a concessão
de fiança ou liberdade provisória
(art. 2º, inciso II), além da determinação
de cumprimento da pena em regime integralmente
fechado (art. 2º, § 1º).
É considerado, via de conseqüência,
um crime de especial relevância, recebendo
tratamento mais gravoso que aqueles considerados
de menor potencial ofensivo, crimes de média
gravidade, e ainda, que os crimes graves aos quais
não se nega a possibilidade da extinção
de punibilidade, permanecer solto durante o curso
do feito e, por fim, a progressão de regimes.
O que objetivou a Lei dos Crimes Hediondos ?
Teve o claro propósito de punir severamente
os crimes que considerou hediondos (art. 1º,
incisos e p. único), bem como aqueles que
considerou equiparados (art. 2º, "caput").
Deve prevalecer, pela melhor exegese, a norma
de caráter especial que, como é
sabido, sobrepõe-se à de caráter
geral, pela vigência do princípio
da especialidade, o qual faz com que a lei
geral (Código Penal), seja suplantada pela
lei especial (Crimes Hediondos), conforme a definição
do artigo 12 do Código Penal.
Para arrematar o raciocínio, nesse particular,
deve-se ter em mente a mens legis que inspirou
a Lei 9.714/98.
Sabe-se que a realidade jurídico-penal
brasileira contempla quatro tipos de infrações
penais: infrações de menor potencial
ofensivo, cujo tratamento é o menos gravoso,
permitindo a resolução dos casos
por conciliação ou transação,
além da aplicação de procedimento
sumaríssimo em sua apuração;
infrações de média gravidade,
que por força dos próprios termos
da Lei 9.714/98, são aquelas que permitem
o resgate das penas por formas de punição
diferenciadas do aprisionamento; crimes graves,
aqueles que não autorizam as formas substitutivas,
apesar de comportarem a progressão de regimes
prisionais e, por fim, os crimes hediondos ou
a eles equiparados, cuja disciplina é extremamente
severa.
Buscou-se emprestar, também ao infrator
que incorreu na censura penal pela prática
de crime de média gravidade, como já
ocorria com as infrações de menor
potencial ofensivo, um tratamento mais adeqüado,
mais apto à proporcionar sua recuperação
e afastamento das incidências criminosas.
Teve o desiderato de permitir a ele o resgate
de reprimenda, sem a estigmatização
decorrente do encarceramento.
Contudo, o tráfico ilícito de
entorpecentes, flagelo dos tempos modernos,
não se inclui entre os crimes de média
gravidade. É por essência e definição
legal, um crime da maior gravidade, devendo-se
empregar na repressão à conduta,
o rigor suficiente à punição.
Esta afirmação não tem caráter
pessoal, mas representa o pensamento global a
respeito do tema, em face de ocasionar a falência
de alguns países, dominados pelos barões
do tráfico, ocasionando, como infelizmente
se observa na cidade do Rio de Janeiro, a existência
de um poder paralelo, que vem a se sobrepor aos
órgãos públicos. Nesta linha
de raciocínio, evidentemente seria um paradoxo
erigí-lo à condição
de beneficiário das penas alternativas.
Sabe-se que a "...prisão é um mal
necessário, mas deve-se resguardá-la
para o criminoso que realmente é pernicioso
à sociedade. Para aquele que, em liberdade,
não sabe dela usufruir sem ocasionar danos
a terceiros, sem provocar o temor por suas ações
inescrupulosas. Em suma, para aquele que livre,
somente encontra estímulos para infringir
as normas penais, atentando contra a ordem pública,
sem dar atenção às conseqüências
que poderão atingi-lo, como a própria
sociedade..." (3)
A interpretação extensiva, apesar
dos respeitáveis argumentos que a sustentam,
conflita com a intenção legislativa,
desvirtuando-a, como entra em choque com a necessidade
de se empregar contra tão funesta atividade,
um tratamento rigoroso, como forma de minimizá-lo,
já que eliminá-lo não é
possível.
Constata-se, de outra parte, que a justificativa
embasada na possibilidade do juiz negar a substituição,
tendo em conta as circunstâncias judiciais,
parcialmente repisadas no art. 44, inciso III,
do CP, contém defeitos.
A solução caso a caso, compreende
problemas que não podem ser olvidados,
destacando-se a obrigatoriedade de extensão
do benefício a quem já tenha sido
condenado anteriormente à vigência
da Lei, desde que não valoradas negativamente
as circunstâncias judiciais.
Isso se dá naquelas condenações
onde o Ministério Público não
interpôs recurso, acatando a solução
empregada pelo juiz, assim como a dosimetria efetivada,
pela incidência do princípio da inviabilidade
da reformatio in pejus, onde não
é dado à Instância Superior
reconhecer contra o réu, qualquer elemento
negativo não admitido na sentença.
E, tendo havido trânsito em julgado para
ambas as partes, também se vê a imutabilidade
da decisão, o que implica dizer que todo
e qualquer traficante condenado, que não
tenha visto a valoração negativa
das circunstâncias judiciais, deverá
ser imediatamente posto em liberdade, por ser
merecedor da substituição da pena
privativa de liberdade por penas restritivas de
direitos.
Sabe-se que os Tribunais vêm com bastante
rigor o estudo dos elementos contidos no art.
59, do CP (parcialmente repisados no art. 44,
III), considerando os seguintes aspectos:
A culpabilidade tem relação com
a imputabilidade penal, a consciência da
ilicitude da conduta, o grau de comprometimento
do invidívuo, e o delito de tráfico
tem tais elementos bastante ressaltados, mantendo-se
o entendimento de que isso não comportaria
acréscimo, por integrar o tipo penal.
Os antecedentes são, segundo a orientação
mais liberal, somente o registro de condenações
criminais pretéritas não trânsitas
em julgado, ou que não mais produzem os
efeitos da reincidência ou, consoante a
interpretação mais extensiva, toda
e qualquer ação penal existente
contra o infrator. É portanto, situação
absolutamente pessoal, e que presente, poderia
resultar na negativa para qualquer tipo de ilícito.
A conduta social, relaciona-se ao comportamento
mantido pelo acusado em sua comunidade, as relações
familiares, enfim, tudo que diga respeito à
interação com outras pessoas, sendo
bastante comum que nas instruções
criminais, os informes sejam positivos, que as
testemunhas que o conheçam tragam notícias
de comportamentos normais, quando não elogiáveis.
A personalidade, de caráter absolutamente
individualizado, pode ser encarada como negativa,
desajustada ao meio social, pelo simples fato
de se dedicar à narcotraficância.
Mas isso já não está sendo
reprimido pela própria existência
do crime ? Não haveria a necessidade de
se demonstrar outros fatores para autorizar a
majoração ?
A motivação é a obtenção
de lucro fácil com a difusão do
consumo de entorpecentes, ou seja, com a desgraça
de outrem. Via de regra, pretendendo os juízes
exasperar a reprimenda com tal fundamentação,
encontram resistência nos Tribunais.
As circunstâncias do crime são,
normalmente tão características,
que somente excepcionalmente autorizariam o aumento.
Fica bastante óbvio que a vedação
do instituto, fundamentada em algum desses elementos
contidos no art. 44, inciso III, do CP, não
é tão fácil assim. O que
poderia ocorrer, seria a aceitação
de um tratamento diferenciado ao existente antes
da vigência da Lei das Penas Alternativas,
dando-se a eles uma outra aplicação,
com risco de ofensa ao princípio isonômico,
em se considerando os que ainda tem condenação
pendente.
Não se pode deixar de dizer que a assertiva
de que existem diferenças na prática
da narcotraficância, como também
na qualidade e condição do traficante,
é correta. Mas não é menos
verdade que todo e qualquer indivíduo que
esteja incluído na cadeia de distribuição
de drogas, exerce atividade maléfica, que
possui sua importância. Pretender-se que
o tipo penal seja fragmentado, autorizando-se
a punição de forma diferenciada,
é buscar-se a adeqüação
da norma legal às necessidades da boa prestação
jurisdicional. Mas, considerar-se que o pequeno
traficante não tenha relevância no
contexto do processo é, data venia,
negar-se uma evidência, como também
propiciar-se a utilização do estratagema
de se colocar em circulação, sempre,
pequenas quantidades de droga, com o intuito de
se criar a ilusão de que se trate o agente
de um traficante de pequena expressão.
Ainda no mesmo ponto, há de se dizer da
provocação de fato de difícil
equacionamento, mormente no âmbito dos presídios,
pois não haverá o entendimento relativo
às razões que motivaram que um preso
fosse contemplado, enquanto o outro não
o foi.
Verificando-se vencedora a tese de aplicabilidade,
e tendo-se em conta a gradação que
existe verdadeiramente quanto às penas
restritivas de direitos, a prestação
de serviços à comunidade ou entidades
públicas, por lógica seria uma das
aplicáveis.
Cabe então a indagação:
Em que local o condenado por tráfico de
entorpecentes viria a prestar serviços
?
O juiz da execução, obviamente
encontraria dificuldades imensas em ter aceito
em qualquer instituição, indivíduo
com referido histórico penal. Possível
vislumbrar-se um entrave considerável na
efetivação da medida.
Por arremate, a restrição contida
no inciso II, do art. 2º, da Lei 8.072/90,
proibitiva da concessão de liberdade provisória
ao tráfico ilícito de entorpecentes,
igualmente não poderia mais ser tida como
absoluta. Não haveria como se justificar
a permanência do acusado preso durante o
curso da ação penal, para posteriormente,
condenado, ser restituído à liberdade.
Apesar de haver sido considerada legal a vedação,
dando-se a proibição do benefício
(4), a disposição legal será
letra morta, por se considerar derrogado, indiretamente,
o comando nela contido.
A expressão de tais reflexões,
é feita para o estudo mais aprofundado
do tema, sem que se deixe de considerar todos
os aspectos que envolvem o temário, permitindo
uma definição segura pelo estudioso
do direito, ou por quem tenha por função
a aplicação da lei.
- Juiz de Direito em Blumenau/SC, e professor
da Universidade Regional de Blumenau - FURB.
- SOUZA, Raquel Freitas de e NOGUEIRA, Egydio
de Matos, A aplicabilidade das Penas Restritivas
de Direitos ao Condenado por Tráfico
Ilícito de Entorpecentes, Boletim
do IBCCrim 77, abril/99, pp. 6-7; FARIAS, Vilson,
Alterações no Código
Penal - Considerações Gerais em
torno da Lei 9;714/98, Revista Jurídica
258, abril/99, pp. 58-60.
- MALULY, Jorge Assaf, O Crime de Tráfico
de Entorpecentes e a Aplicação
das Penas Restritivas de Direitos, Boletim
do IBCCrim 77, abril/99, pp. 05-06.
- MARTINS, Jorge Henrique Schaefer, PENAS
ALTERNATIVAS. Comentários à Nova
Lei 9.714, de 25 de novembro de 1998, Curitiba,
Juruá, 1999, p. 174).
(4 ) Habeas Corpus 68.514, Rio Grande do Sul, rel.
Min. MARCO AURÉLIO , STF, RTJ 140/03, p.
838; Habeas Corpus 11.177, Balneário Camboriú,
rel. Des. JOSÉ ROBERGE, TJSC, DJSC 6655,
de 26/10/93, p. 06 e, Habeas Corpus 11.662, Porto
União, rel. Des. JORGE MUSSI, TJSC, DJSC
9145, de 02/01/95, p. 12. |