Acreditamos que seja esse o melhor caminho
para permitir que a Federação volte a "caber no
PIB"
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
e GILMAR FERREIRA MENDES
A emenda constitucional nº 19, de 4/6/1997, introduziu
profundas alterações no regime constitucional da administração
pública. Dentre elas, destaca-se a eliminação do dispositivo
constante do art. 39, "caput", da versão original,
que prescrevia a instituição, no âmbito da União, dos
Estados e dos municípios, de regime jurídico único para
os servidores da administração pública direta, das autarquias
e das fundações públicas. O legislador constituinte
suprimiu, igualmente, a referência expressa ao regime
único contida no art. 206, inciso 5º, da Constituição,
concernente às carreiras de magistério público vinculadas
às instituições de ensino mantidas pela União.
Em diversas disposições da emenda, cuidou
o legislador constituinte de explicitar que determinados
princípios aplicam-se a cargos e empregos públicos.
Assim, as condições para acessibilidade a eles devem
ser estabelecidas em lei (art. 37, inciso 1º). Consagra-se
a indispensabilidade de concurso público para a "investidura
em cargo ou emprego público" (art. 37, inciso 2º).
É verdade que essas disposições regulam
também relações de emprego nas empresas públicas e sociedades
de economia mista. Elas, portanto, não fornecem argumento
decisivo em favor da possibilidade da adoção de um regime
contratual no âmbito da administração direta, autárquica
ou fundacional.
Todavia, no art. 37, inciso 9º, prevê-se
expressamente que a remuneração e o subsídio dos ocupantes
de cargos, funções e empregos públicos da administração
direta, autárquica ou fundacional não podem ultrapassar
o valor do subsídio mensal dos ministros do STF (Supremo
Tribunal Federal).
A eliminação da exigência quanto à instituição
do regime único, associada à possibilidade, expressamente
admitida pelo texto
constitucional, de mais de um regime reforça o entendimento
segundo o qual há de ser plenamente admissível a disciplina
contratual no âmbito da administração. Assim, afigura-se
plenamente compatível com o texto constitucional em
vigor a adoção do regime contratual de caráter trabalhista
no âmbito da administração pública federal, estadual
e municipal.
É certo que a admissão de servidores sob
esse regime há de observar rigorosamente o princípio
do concurso público. Não há dúvida, porém, de que os
servidores regidos por esse sistema não estarão submetidos
ao modelo de estabilidade previsto no artigo 41 da Carta.
É que, nesse artigo, consagra-se que "são estáveis
após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados
para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso
público".
Ainda que se devam tomar todas as cautelas
na dispensa de servidores contratados mediante concurso
público, é certo que a rescisão do vínculo não terá
a mesma solenidade do desfazimento da relação administrativa
no plano estatutário. Da mesma forma, afigura-se inequívoco
que, submetidos à legislação trabalhista, os servidores
e seus dependentes não mais gozarão do regime previdenciário
especial assegurado aos servidores públicos ocupantes
de cargos efetivos (Constituição, art. 40).
Assinale-se, ademais, que o texto constitucional
dá ampla liberdade de conformação ao legislador ordinário,
permitindo que, numa pauta de razoabilidade, sejam definidas
carreiras ou funções que poderão ser exercidas sob o
regime de cargo (estatutário) ou de emprego (modelo
contratual).
É certo que a referência da Carta ao regime
previdenciário especial e à estabilidade de algumas
carreiras ou atividades parece trazer ínsita uma definição
pelo enquadramento delas no regime estatutário. É o
que ocorre especialmente com as carreiras da magistratura
(arts. 93, inciso 6º, e 95) e do Ministério Público
(art. 129, parágrafo 4º) e com as carreiras militar
(art. 142, incisos 9º e 10º) e de policial militar (art.
42, parágrafo 2º, e 125, parágrafo 4º). Essas carreiras
e outras que, eventualmente, sejam reconhecidas como
"atividades típicas do Estado" (art. 247)
ficarão sob o regime estatutário e não o da CLT (Consolidação
das Leis do Trabalho).
Destarte, não se comete atentado contra
a vontade do constituinte derivado e o texto constitucional
se se conclui que o legislador ordinário, no âmbito
do seu poder de conformação, pode estabelecer que, ressalvadas
atividades típicas de Estado (que deverão submeter-se
ao modelo estatutário), as demais carreiras públicas
passarão a ser disciplinadas pela lei trabalhista.
Na prática, a referida fórmula ensejaria o restabelecimento
do sistema previsto na lei nº 6.185, de 11/12/1974, com
a redação dada pela lei nº 6.856, de 18/11/1980, que,
no seu art. 2º, estabelece: "Para as atividades inerentes
ao Estado como poder público sem correspondência no setor
privado, compreendidas nas áreas de segurança pública,
diplomacia, tributação, arrecadação e fiscalização de
tributos federais e contribuições previdenciárias, procurador
da Fazenda Nacional, controle interno, e no Ministério
Público, só se nomearão servidores cujos deveres, direitos
e obrigações sejam os definidos em estatuto próprio, na
forma do artigo 109 da Constituição federal".
Se corretas essas assertivas, poderá o
legislador ordinário adotar o "modelo celetista"
para a grande maioria dos empregos efetivos no serviço
público. Adotada essa orientação, o "núcleo essencial"
do serviço público, relacionado às atribuições exclusivas
de Estado, subsistirá sob a regência do sistema estatutário.
O regime comum passará a ser, todavia, o da legislação
trabalhista.
Acreditamos que seja esse o melhor caminho
para permitir -na expressão de um dos autores deste
texto- que a Federação volte a "caber no PIB",
sem necessidade de todo o esforço tributário nacional
ser destinado praticamente a sustentar, em regime único,
servidores ativos e inativos, que recebem consideravelmente
mais que os trabalhadores do segmento privado.
Ives Gandra da Silva Martins, 63, advogado tributarista,
é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista
e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército e
presidente da Academia Internacional de Direito e Economia.
Gilmar Ferreira Mendes, 42, doutor em direito pela Universidade
de Münster (Alemanha), é subchefe para assuntos jurídicos
da Casa Civil da Presidência. |